terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Uma letra


Ele andava faminto pelas querelas próprias da vida que não escolhera. Seu nome era Chico Feixo. Chico tinha no seu corpo a paisagem de uma seca. Para quem o via, não, todo fornido, delineado, fofo, diziam uns e outros.

Mas Chico só sentia as pontadas agudas nas suas costelas, como se ali tivesse um infante de oito meses. Quando deitava, suas pernas e outros membros, sentindo tão descarnados, doíam quando o choque entre seus lados, tentava repousar nas camas mais macias. E assim, se Chico não fosse tão imerso numa quietude tão própria, poderíamos ouvir, quem sabe, impropérios, daqueles ressentidos, desgarrados, dignos de galinhas e guinés.

Um dia desses, nem tem tanto tempo, Chico que se achava tão sem dono de vida, remoendo desastres que se imputava, ouviu que era preciso ir, ainda sem saber de onde era.

Chico arrumou o que ainda lhe parecia indispensável, colocando numa sacola qualquer, um par de cuecas, calças, sapatos, camisetas e foi ter. Saiu sem rodas, caminhando, sabendo que a cada instante, a única urgência era que um pé seguisse o outro. Uma passada por vez. Foi desse modelo que se viu viajante.

Alguns dias, dormia embaixo de uma mangueira, bananeira, jambeiro, dormia céu aberto,vendo suas manhãs raiarem, ainda como sua passada. Uma raiada por vez.

Chico conheceu Maria, tomou café com José, com Fernando experimentou um trago. Mariana lhe fez amor. Cecília rezou-lhe com um ramo. O menino João lhe fez um retrato. Conheceu muitos. Nessa medida, se desconheceu. Percebeu que os caminhos, ruelas, terraços, palhoças eram muitas e estavam ali.

A passada de Chico começou a ter um ritmo próprio, ora galopante, ora arrastado, pois seus pés já tinham adquirido a sabedoria que um não precisa ser lembrado de ir junto ao seu outro.

Dizem que Chico agora danou-se pro sertão, pra mata, para as chapadas, canaviais, ribanceiras e até para as selvas de pedras. De tanto andar, seu corpo ficou esquio, amadeirado, perdendo a fofura que lhe era atribuída pelos alheios. Que, por fim, virou um feixe das varas que recolheu pelas suas andanças.

Mesmo os ventos mais fogosos e insistentes que, ocasionalmente, tentavam vergar o Chico Feixe, ele balançava, sem abrir mão de com isso, criar novas danças, que também passaram a embalar suas dormidas. Foi na expansão, construindo sua mansidão.

Afinal, uma letra pode ser tudo, às vezes, nada.


Um comentário:

  1. Chico Feixo tava com desequilibrio kapha, mas se perdeu nas ruelas do mundo pra achar seu equilibrio Vata...rsrs.
    Adorei essa andança errante e poética :)

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