sábado, 29 de abril de 2017

"Não sei dançar"


Já vai novamente? O que é dessa vez? Qual foi o estalo? E se tiver uma pessoa? Qual seria a matéria da escrita? – As questões eram tantas que sem as interrogações poderiam ser uma letra de uma música qualquer, dessas que ninguém ouviria ou tampouco cantaria. Iria para o limbo, feito de verde musgo, pantanoso, monstruoso, sem fala ou audição alguma. A solidão seria o malte. O malte seria a tontura. Da tontura viria o temor. E o temor é tão grave, grave como um tenor. Um tenor que cantaria sobre o cão, a rapadura amalgamada com o maracujá.

Assim ouviu e calada ficou. Ficou se fazendo dormir. Olhos abertos. Ouvidos zunindo e um som que vinha ao longe de uma voz feminina que disse eu não sei cantar tão devagar para acompanhar. Ou para te acompanhar. Do ouvido, lembrou da letra toda, quando na descida da serra, do lado dela, que já a acompanhava havia anos, cantando junto disse tudo, quando o estalo se fez dessa música. Ali ela soube que não poderia estar mais, ainda que tivesse pelejado uma multidão de meses depois. Vá. Termine seu conto. O conto se contado todo, poderíamos dizer, seria inacabado. Teria sido deixado em paz. Teria ficado nos recalques, nos silêncios, na vontade de não existência.

Não foi o caso, porque nunca é o caso. O caso é que ela fora violentada. Tinha dez e alguns poucos anos a mais quando ouvira a primeira das canções, no mesmo tempo em que ganhara de debute a vitrola de aniversário que hoje não saberia dizer em que lixeira eletrônica ela se amontoaria. Quisera dizer liquefazia, mas essas coisas das desnaturezas não se desmontam, são como pilhas que o ambiente, quando não tratado, regurgitam ad infinitum.

O autor de tanta violência era uma década a mais. Talvez uma década menos um ou menos dois, ainda assim uma década. E com esse autor, ela se obrigou a casar. Se obrigou pela culpa, pela vontade, pelos olhos fechados, pela blusa que ela tinha vestido por cima da pele nua, pelos muitos que essas indelicadezas se consolidam na vergonha, vergonha-verde-musgo.

Então ela poderia dizer que essa música era dela. Era dela porque ela a ouviu antes de ser escrita. A ouviu uma segunda vez, quando descia a serra e uma terceira, quando cantou, sem a melodia a fazer coro, para outra de sua vida.

A mesma escrita e já outra vida.  Talvez Len e Berni tenham razão. Somos todos monstros do pântano ou, no mínimo, habitamos ele, ela pensou enquanto caminhava estalando os galhos ainda não molhados pela garoa.


Ps. Para ler ou ouvir (com) Marina Lima. 


quinta-feira, 20 de abril de 2017

Bolo de páscoa



Nos dias perturbados ela aprendera sobre o fluxo da consciência.

Não que tivesse sido uma escolha própria. Foi-lhe dado pelos percalços todos, quando se apercebeu que a mente é apenas um oitavo de uma coisa maior.

Que coisa maior, poderíamos perguntar a ela?

Ela não saberia dizer, provavelmente, talvez, sua mente, tamanho-de-baleia, coisa magra, feita de RAMOS, fosse uma sensação blue.

Não que adiante perscrutar a mente dela.

Porque o tamanho do mar ou da seca eram enormes demais para serem problematizados.

Apenas enormes e tão pequeninos, disse o outro.

O outro disse mais, disse que o som de jazz, na melodia blues, eram apenas coadjuvantes, quando elas cantavam numa oitava sempre superior ao que o próprio ouvido estava disposto a ouvir.

Ela era morena, sabida de samba, feita a sorrir, ainda que pouco afeita aos demais.

Quase não conseguia dizer que só queria a você, o prazer, carnaval, sem saber que a cada balada dada era uma esquina dobrada, quando os anos mais os anos se acumulam numa música de língua toda estrangeira.

Assim passavam os fluxos nada conscientes.

Até o dia que numa páscoa qualquer, dias depois, ganhou dos ovos que esperou, apenas a embalagem mais preciosa dela.

Nada além da embalagem.

Não tinha gosto de açúcar, tampouco de farinha. Era feito bolo, bolo de amêndoas.

E ainda dizem, disse ela, que sexo com camisinha é sem gosto.