Seria uma
tarde como outra qualquer, se não houvesse o chamado para dissimular a ferrugem-maresia do cotidiano. Ela recebeu as receitas todas. Bolo, café,
ansiolíticos, tapiocas, psicotrópicos, uma ou outra amostra grátis. Tudo mais ou
menos do ordinário de todas as horas, meses ou anos, quiçá. Farmácia, padaria,
mercado, dentista. Dessa linha, uma parada apenas. Na sua frente, um
círculo-giradouro. Ela se viu freando. Não era dada a seguir os caminhos que
não são das linhas. Não sem rapidez, como quem não pode parar e ouvir os ruídos-silêncios
de sua existência. Na parada, em frente ao giro, dois capacetes negros são
despidos na sua direita. Os rostos, borrados, também não pareciam a ela, alinhados, ainda que totalmente
potentes naquela moto preta, das gigantescas, uma roda colosso. Da linha que
parecia vir reta do giradouro, um carro enorme, na sua esquerda, um outro gigante dentro, rosto
todo vermelho, não se sabe se de sol, se de álcool, se de ódio. Esse ela viu
mais de perto, ou ouviu, talvez. Ouviu quando foi chamada de rapariga do cu arrombado, de escrota, de abestada, de imbecil, ouviu tudo isso, mas do outro lado o
silêncio era mais alto. Era o silêncio de um 38, posto no rosto. Visto, por ela,
como se fosse um filme-adrenalina, daqueles que também se assistem para ocupar o
espaço que ainda não foi entorpecido. E nada disso estava previsto, logo para
ela, que esquecia tudo, apenas não esquecia de comprar a agenda de todo ano,
cuja encardenação era manuseada e preenchida no tempo da gravidez de um gato. A
linha, esse parágrafo, era apenas para dar uma parada no café do apito. Um café,
um chamego, alguém tocando sua face, limpando sua cara, e perguntando se o
cartão é visa ou master. Ela não poderia precisar o mais ensurdecedor de tudo,
se o disparo do 38 ou aquele rosto afetado de carmim, que tornou o trânsito e
suas melodias uma música menor. Talvez o som do todo, do que viu e deixou de
ver, não fosse realmente a questão. Talvez a questão fosse andar na linha ou pegar
o giradouro novamente. Ela ainda não sabe. Porque as linhas de um só parágrafo
são coisas que não são de onde são e elas nunca pertenceram a nenhum proprietário,
especialmente dela que não tem um teto todo seu. Se essa história fosse real
e pertencesse a ela, ela diria que seu fim virou multa e que um dia, quando desordenar
a aquiescência do seu cotidiano, ela pagará. Um dia quando as linhas,
desdobradas, se tornarem um novo parágrafo.