sábado, 5 de novembro de 2016

Uma só linha e um giradouro


Seria uma tarde como outra qualquer, se não houvesse o chamado para dissimular a ferrugem-maresia do cotidiano. Ela recebeu as receitas todas. Bolo, café, ansiolíticos, tapiocas, psicotrópicos, uma ou outra amostra grátis. Tudo mais ou menos do ordinário de todas as horas, meses ou anos, quiçá. Farmácia, padaria, mercado, dentista. Dessa linha, uma parada apenas. Na sua frente, um círculo-giradouro. Ela se viu freando. Não era dada a seguir os caminhos que não são das linhas. Não sem rapidez, como quem não pode parar e ouvir os ruídos-silêncios de sua existência. Na parada, em frente ao giro, dois capacetes negros são despidos na sua direita. Os rostos, borrados, também não pareciam a ela, alinhados, ainda que totalmente potentes naquela moto preta, das gigantescas, uma roda colosso. Da linha que parecia vir reta do giradouro, um carro enorme, na sua esquerda, um outro gigante dentro, rosto todo vermelho, não se sabe se de sol, se de álcool, se de ódio. Esse ela viu mais de perto, ou ouviu, talvez. Ouviu quando foi chamada de rapariga do cu arrombado, de escrota, de abestada, de imbecil, ouviu tudo isso, mas do outro lado o silêncio era mais alto. Era o silêncio de um 38, posto no rosto. Visto, por ela, como se fosse um filme-adrenalina, daqueles que também se assistem para ocupar o espaço que ainda não foi entorpecido. E nada disso estava previsto, logo para ela, que esquecia tudo, apenas não esquecia de comprar a agenda de todo ano, cuja encardenação era manuseada e preenchida no tempo da gravidez de um gato. A linha, esse parágrafo, era apenas para dar uma parada no café do apito. Um café, um chamego, alguém tocando sua face, limpando sua cara, e perguntando se o cartão é visa ou master. Ela não poderia precisar o mais ensurdecedor de tudo, se o disparo do 38 ou aquele rosto afetado de carmim, que tornou o trânsito e suas melodias uma música menor. Talvez o som do todo, do que viu e deixou de ver, não fosse realmente a questão. Talvez a questão fosse andar na linha ou pegar o giradouro novamente. Ela ainda não sabe. Porque as linhas de um só parágrafo são coisas que não são de onde são e elas nunca pertenceram a nenhum proprietário, especialmente dela que não tem um teto todo seu. Se essa história fosse real e pertencesse a ela, ela diria que seu fim virou multa e que um dia, quando desordenar a aquiescência do seu cotidiano, ela pagará. Um dia quando as linhas, desdobradas, se tornarem um novo parágrafo.