sábado, 7 de fevereiro de 2015

Notas de uma professora



Hoje estou velha, muito velha. Começou assim seu discurso como paraninfa da última turma de formandos daquela escola de freiras em que tinha ensinado mais de meio século, estudado uma década. Muitos de vocês estão me vendo em carne viva pela primeira vez, mas sou aquela cujo retrato está pendurado no bebedouro do corredor do Lado B, por isso posso dizer que estou aqui uma vida inteira. Talvez os que lhe pariram, ou os que pariram os que lhe pariram, tenham me conhecido nos tempos em que a lousa e eu erámos amigas inseparáveis. Hoje mal posso segurar minhas notas, tampouco posso me furtar delas e confiar na minha memória. O salão, lindamente decorado, flores, arranjos, toalhas de linho, os perfumes mais variados, não parecia tão atento e, assim, ela sentiu que estava em casa. Não posso mensurar o que significou para mim esse convite. Desde que o recebi, que escrevo poesia e leio filosofia, que voltei a ouvir música e a pintar aquarelas, que penso no que poderia dizer a tantos jovens que estão a se formar. Reconheço muitos dos que aqui estão. Vejo médicos, advogados, políticos, padres, gente distinta, alguns executivos, e sinto que contribui para isso. Nisso, uma salva de palmas vinda do lado esquerdo, puxou uma verdadeira ovação. Não sabemos se o repentino rubor que lhe escureceu as faces, era resultado do excessivo burburinho ou do rouge mal aplicado. De qualquer maneira, o salão parecia mais ouvido. Não que isso tivesse feito alguma diferença para a palestrante. Assim como o alcance de sua visão, há muito que pouco lhe chegava aos ouvidos, nem mesma a sua própria voz ela conseguia, seguramente, acompanhar. Nada disso a intimidou, nem quando ela disse, que havia dedicado sua vida a educação e que essa era a sua vocação. Muitas outras palmas seguiram sua fala. Ela sabia disso porque sentia que havia um certo deslocamento no ar. Não daqueles que a deixavam enjoada, com ânsias, mas do outro tipo, que parecia acender lugares há muito enregelados. Minha vida inteira dediquei ao ensino, continuou, e hoje sou realizada por estar aqui, vendo meu trabalho reconhecido. Quero agradecer a todos vocês que tornaram isso possível. E quero desejar a vocês que hoje se formam um destino igualmente compromissado, qualquer que seja o caminho escolhido. Foi minha fortuna servir como professora. E desejo fortuna a todos vocês, porque ninguém vive sem partilhar. Recebo essa homenagem com muito carinho e espero nunca esquecer esse dia. É isso que ainda me faz estar viva. Isso e o carinho dos meus ex-alunos. Se ela pudesse enxergar, talvez desconfiasse do pipocar de luzes que vinham da plateia. Se ela tivesse um smartphone e quiça soubesse o que era isso, talvez suspeitasse do efêmero de todos os monumentos, quando sua imagem congelada se multiplicava em milhares de retratos mundo afora, minha professora de infância#, tão querida#, me ensinou os valores da vida#, inesquecível professora#, Dona Carmen, lúcida como no meu tempo de menino#, Professora querida#, Foi minha professora, hoje é da minha princesa#, amo#, Saudades eternas#, nunca esquecerei minha primeira professora#, agradeço a professora carminha que me ensinou a ler#... O mestre de cerimônias já se encaminhava para pegar o microfone, quando ela suspirou profundamente e disse que queria, ainda, aproveitar a ocasião para agradecer em especial a alguns ex-alunos, que ela não sabia se estariam na plateia, mas que nunca a esqueceram. Agradeceu ao doutor João pelo ecocardiograma que ela não pode pagar e pela receita genérica, que conseguia renovar mês após mês, na fila da Pharmacia J. Um beijo no coração para a senhora Marluce, que havia lhe deixado morar no quarto da Rua das Camélias. Os panetones que recebeu no natal, durante cinco anos seguidos, do senhor Arthur. Um agradecimento especial ao doutor Carlos, que havia agilizado sua aposentadoria, depois de várias idas ao INSS, quando a cadastrou como sitiante de alguma de suas terras. E, finalmente, a Eduarda, ex-aluna, tão bonitinha, que sempre encenava, por causa do enroladinho negro dos seus cabelos, a irmã má de Cinderela, nessa mesma escola, hoje professora e escritora, que lhe dedicou o livro Ironias do feminino: vida que [não] merece ser vivida. Me despeço, então, com um Muito Obrigada.