segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Me abandone jamais



      
Ainda era menino moço quando tive minha mão prometida a ela. Da promessa feita, recebi, vindo de muito longe, uma fotografia três por quatro, uma carta desenhada por letras miúdas e cacheadas e um lenço manchado de batom, que no contraste com o pequeno do riscado, parecia maior do que qualquer outra boca já vista por mim.

Não sabia exatamente o que significavam aquelas ofertas nem tampouco o que viria a ser o prometido da coisa toda, mas isso não ocupava os meus tempos de mocidade. Gostava mesmo era do jogo de bila no quintal do vizinho, depois de uma chuva caída, quando a terra assentava igual cimento fresco, aguardando o escultor mais audacioso, modelando curvas, rampas, buracos, muros, como se o mundo pudesse ser desenhado e superado num tempo comum. 

Nos dias de terra seca, quando o sol era o desafio maior, acendendo o mundo com a quentura do fogo, bom mesmo era quando vinha o vento por trás da serra de Seu José, espantando a brasa da pele, como se fosse o combustível perfeito para as pipas que eu e muitos dos meus amigos fazíamos com as riscas dos coqueiros, os papeis de presentes que pegávamos de nossas avós, colados com o sumo dos arbustos do sertão e empinadas com os carreteis emendados, pintassem os céus do colorido de todos os arco-íris. Nem sei porque lembrei disso tudo, pois a conta dessa memória é igual ao maior feito de um trancoso. Uma conta maior do que os trinta vezes trinta, quando os zeros não nos é familiar. Ainda assim, todo feliz, naquele sertão.

E quando nos trinta cheguei, já não tinha o tempo de me ocupar com o tido, talvez o ido, pois os marcadores já eram espaciais e ela vinha de viagem, prometida que estava por aqueles que por mim falavam. No dia que ela chegou, olhei de banda, na segunda melhor roupa que tinha, sapato engomado, bigode cerzido, perfume oleado. Reparei que ela era toda alinhada, cheirosa como cravo de rosa, bonita como uma pedra polida, viçosa como uma floresta encantada.

Todo tímido fiquei, olhei sem nem ver, sorri para dentro, fiz as mesuras todas e a promessa cumpri. Cumpri também de banda, do lado que nem era meu, com a melhor roupa que tinha. Tiraram fotos, fizeram brindes, jogaram rosas, nos deram casa, geladeira, fogão, cama, sofá e toalhas.  Mas desde o primeiro dia, que eu a vi e que penso que ela me olhou, que fiquei desconfiado. Fiz como homem as mesmas coisas que sabia que tinha que fazer quando menino. Fiz assim de eito, tentando fazer certo, de jeito a não deixar faltar o pão de milho, a carne de toda semana e a conta de luz, muitas vezes atrasada.

Ocupado que estava, com as coisas por mim não prometidas, verguei sobre os dias todos. Foram semanas, meses, anos, com ela compartilhados, na labuta ferrenha, dos filhos já nascidos, das ressacas ressentidas, das traições permitidas, das rinhas envelhecidas, que depois de algumas taças vencidas, ela me olhou e cantou, quase numa rima antiga:


Eu venho de longe e do tempo
Que me prometeram
Não me disseram que seriam
Senhores do meu dia
Nem censores das minhas noites
E vim sem atinar nem nada

Mas quando lhe vi
De algodão bordado
Sandália trançada
Cigarro de palha

Pensei num mundo sem igual
Suspirei folgada
Tive os seus filhos todos
Lavei muita louça tão louca

Nem vi os dias passarem, apesar de conta-los todos
Acordei cedo, dormi cedo também
Afoguei meus calores no abanar de minhas saias
Tentei ser mais calma, mais rápida

Aprendi a ouvir suas biritas todas
E no dia seguinte, sem cor, botei meu batom vermelho
Funguei o vento de minhas deusas todas
E me despi das brincadeiras de menina

Quando me chegou pelo correio
Um pedido de promessa eterna
Acreditei na folha das postagens
E das rimas muitas vezes lidas
Outra vezes ouvidas

Dos amores cantados
E de velhas histórias de amor
Acreditei que escreveria a minha, que seria sua
Que seria nossa

Mas roubaram o que nem era meu
Tomaram a minha vida inteira
No dia mesmo do prometido
Como se eu pudesse pedir a um maestro
Podemos refazer de novo?

Como se a refazenda da vida
De hoje pra ontem
Me deixasse mais sábia ou quiça você
Nem hoje nem amanhã tampouco antes

Eu pudesse dizer
Não me abandone jamais
Ou pelos menos as cartas de outrem...
Quando me chegou sua foto, todo feliz
     quando eu querendo
sertão menino.




Ouvindo assim, olhando para ela, quando a lua, combinou com um brilho qualquer, eu pudesse, no meu arfar, ser um outro, o outro possível para ela. O outro possível para mim. E, finalmente, a desejei.