Como o herói da história que meu
avô sempre contava depois da ceia, ao meu pai, fui batizado Ulisses, filho de
Hércules, neto de Gideão. Meu avô gracejava sempre que a nossa estirpe era de
heróis, das que figuravam nas escrituras mais antigas, ainda que suas mãos mal
pegassem em lápis ou folhas, como se o que viesse antes do nosso vivido,
dependesse apenas de sua fala rápida, grávida de uma memória prodigiosa.
Meus antepassados, assim como eu,
desde cedo eram introduzidos nas lides da vida. Cresceram no trabalho com a
terra, sulcando aquele barro vermelho, que não apenas ocupava o vinco das
unhas, mas tomava conta da pele inteira. Sempre que eles despontavam, sob o pôr
do sol, no alcance dos olhos, vinham trigueiros, risonhos e vermelhos,
sobretudo, vermelhos, queimados do sol, banhados da terra, como se o corpo
deles fosse a extensão do que faziam entre o café com batatas, servidos ainda
com o canto dos galos, e a sopa de feijão de todos os fins de tarde.
Quando chegou o tempo que faria
parte dessa companhia, meu avô ainda era vivo. E se eu achava que ele era um
prosador de mesa cheia, descobri que as palavras eram mais abundantes do que as
sementes que eu tinha que jogar entre um sulco e outro daquele vermelhão sem
fim.
Assim como as tardes encarnadas,
vi minha pele se pintando em meio ao falatório do meu avô e ao ritmo das
enxadadas do meu pai. Curiosamente, meu pai não falava coisa alguma, quando
muito resmungava que havia ouvido, depois de ser chamado com atenção.
Logo, minha mãe, que nas poucas
horas que lhe sobrava das tardes de verão, se pegava no seu bem mais precioso
e se punha a costurar, ganhei de presente meu primeiro par de calças, dizendo, uma
roupa de gente grande, para aquele já tão crescido. Corri feliz como as
galinhas depois de um dia de debulhes e sobras. Senti que ali começariam as
minhas histórias e que eu semearia os que viriam de mim com o vivido de antes e
o vivido dali em diante, como se o tempo pudesse ser reto em sua sabedoria e a
minha vontade, de tão soberana, congelasse meus sonhos de menino a me alimentar
pela vida afora.
Mas a vida, essa sim, fica
bulindo nas nossas histórias. E quando ela falha, não tarda em dizer quem é que
manda. Um dia, meu avô viajou, como se a prosa fosse o pior dos amigos cobrando
usuras antigas, num tom zombeteiro da volta dos que não foram. E os dias na terra passaram a ser habitados
apenas pelo ritmado do meu pai, silencioso como só ele sabia ser.
Cada dia era mais longo do que o
outro. A batata que antes era colhida e cozida para anunciar a lide, parecia
triste, amarga, cheirando a ferro curtido de ferrugem. A sopa, que sempre
anunciara os risos, as pelejas, as fanfarras, minguara igual as bravatas do
velho herói.
Dei então pra me furtar do que
sempre havia conhecido. Peguei mulher, juntei barriga, dei para jogar,
desaprendi do ouvido, perdi dentes, fermentei o cereal plantado, cometi abusos
e fui abusado quando, então, pelas estradas me joguei.
Virei caixeiro, negociante,
marinheiro, cafetão, professor, mula, pesquei sereias, cacei baleias, fiz
filhos, tomei tragos, provei coisa que não era de homem macho e pelo mundo todo
fiz mil voltas, até me entontecer por inteiro.
Um dia, parado na janela de um
prédio alto, pensei sobre aquele mundo vagalume e para onde ainda me
levaria, que milhões de novas coisas botaria em minha conta, quando me peguei lembrando
de uma das histórias do meu avô, quase como se eu pudesse ouvi-lo, me chamando
de novo para sentar em nossa mesa.
Essa história é a história de um
grande guerreiro. Ele era forte como o touro escolhido pros cruzamentos. Ágil
como guinés nas manhãs de um sábado de festa. Fértil como ele só, era pai de
uma dezena de meninos. Tinha uma mulher que era linda que só ela. Um dia
chamaram ele para apartar uma briga de vizinhos que viviam trocando tiros e
injúrias. Lá das terras do alto da serra. E ele foi, foi com seus filhos mais
velhos, já todos burregos grandes, como se fosse o general do exército francês. O caminho
foi tão longe que no meio já não tinha carne seca nem pó para o café. Mas eles não
voltaram atrás no prometido, o tamanho do herói era o tamanho da palavra dada. Sua
mulher não tinha gostado dessa aventura, sabia que o tempo que ele havia dito
que estaria em cima daquela serra, seria mais alto que ela estava disposta a
esperar.
Os filhos que com ele foram,
fincaram casas pelo caminho, casaram e hastearam bandeiras mundo afora, como se
o caminho de ida e de vinda, deixasse de ser uma reta. Eles ali prosperaram,
desbravam mato, fizeram fazenda, uns criaram gado, outros descobriram ouro. E de
lá, de onde tiveram parada, mandaram presentes para sua mãe. Nunca faltou nada
a ela, nada que ela não gostasse de comer e de vestir. A fartura chegava a ser
tanta, que os vizinhos, vira e mexe, iam se empanturrar por lá. Tinha uns que levavam
violas, outros sanfonas, sem falar nos zabumbeiros. Muitas das músicas que
eram tocadas nos forrós improvisados, como se cada um dos dançantes já não soubesse
dos dias que eram o das festas, falavam das histórias do grande herói. Já sabiam
até como ele deu fim à guerra tão grande foi o sucesso de findar a peleja. Mas
ninguém sabia onde danado ele estava.
Tinha até um concurso de adivinhação para dizer o dia que ele voltava. Parecia até que tinham dado destino nele até que ele voltou, porque o que faz um grande herói é a hora de ir e a hora de voltar sem perder a própria palavra, pois mesmo quando dá uma coisa dentro da gente, de sair mundo afora e ganhar todas as batalhas, se aprende que a paz não só se ganha com a guerra.
Tinha até um concurso de adivinhação para dizer o dia que ele voltava. Parecia até que tinham dado destino nele até que ele voltou, porque o que faz um grande herói é a hora de ir e a hora de voltar sem perder a própria palavra, pois mesmo quando dá uma coisa dentro da gente, de sair mundo afora e ganhar todas as batalhas, se aprende que a paz não só se ganha com a guerra.