terça-feira, 25 de novembro de 2014

A volta dos que não foram



Como o herói da história que meu avô sempre contava depois da ceia, ao meu pai, fui batizado Ulisses, filho de Hércules, neto de Gideão. Meu avô gracejava sempre que a nossa estirpe era de heróis, das que figuravam nas escrituras mais antigas, ainda que suas mãos mal pegassem em lápis ou folhas, como se o que viesse antes do nosso vivido, dependesse apenas de sua fala rápida, grávida de uma memória prodigiosa.

Meus antepassados, assim como eu, desde cedo eram introduzidos nas lides da vida. Cresceram no trabalho com a terra, sulcando aquele barro vermelho, que não apenas ocupava o vinco das unhas, mas tomava conta da pele inteira. Sempre que eles despontavam, sob o pôr do sol, no alcance dos olhos, vinham trigueiros, risonhos e vermelhos, sobretudo, vermelhos, queimados do sol, banhados da terra, como se o corpo deles fosse a extensão do que faziam entre o café com batatas, servidos ainda com o canto dos galos, e a sopa de feijão de todos os fins de tarde.

Quando chegou o tempo que faria parte dessa companhia, meu avô ainda era vivo. E se eu achava que ele era um prosador de mesa cheia, descobri que as palavras eram mais abundantes do que as sementes que eu tinha que jogar entre um sulco e outro daquele vermelhão sem fim.

Assim como as tardes encarnadas, vi minha pele se pintando em meio ao falatório do meu avô e ao ritmo das enxadadas do meu pai. Curiosamente, meu pai não falava coisa alguma, quando muito resmungava que havia ouvido, depois de ser chamado com atenção.

Logo, minha mãe, que nas poucas horas que lhe sobrava das tardes de verão, se pegava no seu bem mais precioso e se punha a costurar, ganhei de presente meu primeiro par de calças, dizendo, uma roupa de gente grande, para aquele já tão crescido. Corri feliz como as galinhas depois de um dia de debulhes e sobras. Senti que ali começariam as minhas histórias e que eu semearia os que viriam de mim com o vivido de antes e o vivido dali em diante, como se o tempo pudesse ser reto em sua sabedoria e a minha vontade, de tão soberana, congelasse meus sonhos de menino a me alimentar pela vida afora.

Mas a vida, essa sim, fica bulindo nas nossas histórias. E quando ela falha, não tarda em dizer quem é que manda. Um dia, meu avô viajou, como se a prosa fosse o pior dos amigos cobrando usuras antigas, num tom zombeteiro da volta dos que não foram.  E os dias na terra passaram a ser habitados apenas pelo ritmado do meu pai, silencioso como só ele sabia ser.

Cada dia era mais longo do que o outro. A batata que antes era colhida e cozida para anunciar a lide, parecia triste, amarga, cheirando a ferro curtido de ferrugem. A sopa, que sempre anunciara os risos, as pelejas, as fanfarras, minguara igual as bravatas do velho herói.

Dei então pra me furtar do que sempre havia conhecido. Peguei mulher, juntei barriga, dei para jogar, desaprendi do ouvido, perdi dentes, fermentei o cereal plantado, cometi abusos e fui abusado quando, então, pelas estradas me joguei.

Virei caixeiro, negociante, marinheiro, cafetão, professor, mula, pesquei sereias, cacei baleias, fiz filhos, tomei tragos, provei coisa que não era de homem macho e pelo mundo todo fiz mil voltas, até me entontecer por inteiro.

Um dia, parado na janela de um prédio alto, pensei sobre aquele mundo  vagalume e para onde ainda me levaria, que milhões de novas coisas botaria em minha conta, quando me peguei lembrando de uma das histórias do meu avô, quase como se eu pudesse ouvi-lo, me chamando de novo para sentar em nossa mesa.

Essa história é a história de um grande guerreiro. Ele era forte como o touro escolhido pros cruzamentos. Ágil como guinés nas manhãs de um sábado de festa. Fértil como ele só, era pai de uma dezena de meninos. Tinha uma mulher que era linda que só ela. Um dia chamaram ele para apartar uma briga de vizinhos que viviam trocando tiros e injúrias. Lá das terras do alto da serra. E ele foi, foi com seus filhos mais velhos, já todos burregos grandes, como se fosse o general do exército francês. O caminho foi tão longe que no meio já não tinha carne seca nem pó para o café. Mas eles não voltaram atrás no prometido, o tamanho do herói era o tamanho da palavra dada. Sua mulher não tinha gostado dessa aventura, sabia que o tempo que ele havia dito que estaria em cima daquela serra, seria mais alto que ela estava disposta a esperar.


Os filhos que com ele foram, fincaram casas pelo caminho, casaram e hastearam bandeiras mundo afora, como se o caminho de ida e de vinda, deixasse de ser uma reta. Eles ali prosperaram, desbravam mato, fizeram fazenda, uns criaram gado, outros descobriram ouro. E de lá, de onde tiveram parada, mandaram presentes para sua mãe. Nunca faltou nada a ela, nada que ela não gostasse de comer e de vestir. A fartura chegava a ser tanta, que os vizinhos, vira e mexe, iam se empanturrar por lá. Tinha uns que levavam violas, outros sanfonas, sem falar nos zabumbeiros. Muitas das músicas que eram tocadas nos forrós improvisados, como se cada um dos dançantes já não soubesse dos dias que eram o das festas, falavam das histórias do grande herói. Já sabiam até como ele deu fim à guerra tão grande foi o sucesso de findar a peleja. Mas ninguém sabia onde danado ele estava. 

      Tinha até um concurso de adivinhação para dizer o dia que ele voltava. Parecia até que tinham dado destino nele até que ele voltou, porque o que faz um grande herói é a hora de ir e a hora de voltar sem perder a própria palavra, pois mesmo quando dá uma coisa dentro da gente, de sair mundo afora e ganhar todas as batalhas, se aprende que a paz não só se ganha com a guerra. 

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Dexter mata Lobão!


A grama do vizinho verdejava sem as flores malditas. Mas nem sempre fora assim. Alguns anos atrás ele chegara com apenas uma pequena mudança. Percebi, enquanto verificava a caixa dos correios, que ele era de parcas posses. Não tinha mais do que um colchão, uma mesa de quatro cadeiras, uma geladeira velha e seu gato. Lembro que na época pensei em como ele havia conseguido entrar na nossa vizinhança, mas logo tratei de esquecer, não parecia que seria permanente.

Dias depois de sua chegada, fiquei levemente irritado com o som que vinha desse meu vizinho. Parecia que as vozes completavam a ausência de posses. Eram vozes de muitos e todos falavam com um estranho sotaque. Me aproximei da cerca viva que nos separava querendo descobrir de que lugar ele vinha. Não soube discernir totalmente, mas alguma coisa me dizia que eram nortistas. Não que tivesse descoberto alguma cadência própria. Mas pela intensidade do barulho, cordas, coros, batuques e pela cor marronzinha do vizinho, acreditei que ele tinha descido de lá.

Talvez eu até tivesse embebecido mais minhas rosas, investigado mais um pouco, se não tivesse tido um susto daqueles, quando o gato do vizinho, desses sem raça definida, escondido por entre os arbustos, me pegou olhando, como se dissesse, que indiscreto. Tratei logo de arrumar minhas ferramentas de jardim e voltei para o interior da minha casa.

Higienizei as mãos no lavabo do piso térreo e lavei o rosto. Se fosse um dia como outro qualquer, como os dias de ontem, teria passado a loção no rosto, tomado meu leite quente com amêndoas, conferido o jornal on line italiano, e ido para meus lençóis egípcios, ligado minha Foscarini e folheado os livros que o arquiteto me indicara para deixar a mão na mesinha de cabeceira. Seria o sono certo, o sono dos justos. E nunca havia me falhado.

Uma hora depois, farfalhei os panos, me descobrindo todo, como se o som que se propagava pelo mesmo céu, meu e do vizinho, tivesse invadido meu lar.

No outro dia, quando cheguei no escritório, cheguei engomado, terno em riste, riscado, o mesmo que havia usado para os dias especiais. Segui corredor adentro, parando apenas para averiguar minha agenda com a secretária, quando, com a mão já posta na empunhadura da minha sala, ela disse: O senhor está precisando de algo? Claro que disse não, claro que de forma ríspida. Apenas não sei se ela percebeu minha hesitação. Mas ela não era paga para perceber nada, lembrei, enquanto assinalava na agenda, um lembrete de substitui-la.

O caso é que aquele dia bagunçou o resto do meu tempo. Entre um processo e outro, enquanto despachava, lembrava da advertência do gato e do olhar, levemente espantado, da secretária, que cuidei de trocar no dia seguinte.

Em casa, já ambientado, preferi ficar sem ir ao jardim. Correram dias. Meses até. Nunca fui muito católico, mas acompanhei, toda noite, o jornal italiano quando noticiou a aposentadoria do papa alemão. Cheguei a pensar, que tempos loucos esses, em que festejam a saída de um europeu, salvo de passagem, com extremo bom gosto, pois secretamente me regozijei quando vi que ele havia usado o mesmo sapato vermelho que comprara para os dias de verão, ser substituído por um argentino franzino, que falava em marte, que falava em gays, que falava neles. Daquele dia em diante, preferi os noticiários ingleses. Estava farto da cobertura italiana.

Eu sabia, pela ancestralidade do meu nome, que ali, onde eu nasci, não era a minha origem. Cheguei até a pagar, uns trocos qualquer, ao melhor historiador das origens, queria mandar tecer meu brasão, em cima da lareira, pelas tecelãs usadas no último desfile prét-a-porter, mas me neguei a pendurar a renda das paraíbas. Onde eles estavam com a cabeça?

Em meio a tudo isso, tinha o meu vizinho. Ele ainda existia. Não sei se outros móveis haviam sido despachados no seu endereço. Mas, com certeza, sua velha mudança ainda estava lá.

Outro dia, esbarrei com aquele farsante de historiador que havia contratado em frente a área comum do meu condomínio. Audacioso, me informou sobre seu último artigo publicado, falando asneiras sobre as origens rurais das famílias que colonizaram meu país. Cortei rapidamente a conversa, não sem perguntar para que casa ele estava indo. Ele respondeu e eu senti uma fúria me tomando conta, como se eu reconhecesse as vozes do meu vizinho.

Nesse dia, voltei ao meu jardim. Queria ouvir, por entre o eco daquelas parcas posses, se meu nome seria anunciado. Não lavei as mãos, não peguei minhas ferramentas, apenas me aproximei da cerca viva e vi que ali era um dia de festa. Ouvi quando cantaram em coro que dois e dois eram cinco, que a estupidez era maior, as vivas a sociedade alternativa, que se vive para consertar, que a mente está na imensidão, que pelas vias se escorre o sangue e o vinho, que nem se voa nem se pode flutuar, que o dia é branco, que o jogador conhece o jogo pela regra...

Me agachei perto da mesma brecha que havia olhado no primeiro dia. Havia esquecido do gato, quando ouvi o maior dos miados: Nós gatos já nascemos pobres ...

Voltei imediatamente. Procurei na minha despensa. Peguei caviar-salmão-linguado-meu-melhor-vinho-um-charuto-de-fora-meu-melhor-sorriso-como-se-fosse-o-primeiro-dia-sem-deixar-de-levar-alguns-vinhos-italianos-da-minha-adega-preparei-como-quem-azeita-tudo-toquei-na-campainha-e-dei-as-boas-vindas-quatro-anos-depois.

O vizinho agradeceu. A visita disse: ooooi. Me virei rapidamente, me desculpando por não entrar. Fiz um afago no gato, meio sem graça, e voltei para casa.

Dias depois, o quiproquó nos jornais. As manchetes: A vizinhança desvalorizada. Professor de esquerda com rituais satânicos. Orgia e permissividade. Empresários fogem para Miami. Juiz processa agente do Detran por estar embriagado. Helicóptero com cocaína é da família do senador. Dexter mata Lobão! 


ps. acompanhei todas as notícias. Eu e o gato. O adotei, pelo bem da comunidade. Era o meu pro-brono-especial. Só lamento ele não ter raça alguma