Meu nome é Manuel e eu sou alcoólatra.
Hoje são seis anos sem tomar uma gota de qualquer bebida barata ou não. Mas minha
dor contabiliza 10 anos. São dez anos que não escuto a barulheira de Ellen ou
de João, quando ao chegarem da escola, perguntavam a sua mãe Carmen, minha esposa, papai
chegou? Ela, que também já não está no meu cotidiano, dizia sempre aos
nossos filhos, ele está quase chegando. Não
por acaso sou contador da firma que fora do meu tio. E por isso não esqueço a
contagem de cada dia passado do que aconteceu há dez anos atrás, quando cheguei
tarde para o encontro com as crianças, causando espirros na mais alérgica
delas, quando disse, desculpem papai, hoje o dia foi longo, foram muitas contas
a prestar, que tal irmos todos comermos uma pizza. A criançada adora uma pizza. Carmen
não, seu pesar de mais uma noite a dormir com o ronco da minha bebedeira, lhe
fazia pensar na farofa de cuscuz e na galinha que passara a tarde toda a
temperar. Estava cansada, eu sabia, como sabia também que não adiantava
justificar o dia todo, pressionado que estava para pôr ordem nas contas da
empresa. Ela não entendia que o fato de ser sobrinho do chefe de tudo, me
tributava uma carga maior. E que eu precisava da saída, depois do trabalho,
para encontrar com os amigos e sentir que meu corpo era como aquela cerveja
aberta, despressurizando o dia. Carmen, conformada com a alegria das crianças,
enquanto guardava nas suas gavetas seu próprio desgosto, sorriu e disse naquela voz de mãe, a Ellen e a João, não esqueçam seus casacos, a noite promete chuva. Tentou pegar
a chave da perua, que costumava rodar pela cidade, preenchendo de víveres para
o consumo da semana, para os tantos jantares não comidos por mim, sem falar nas
tantas tralhas das crianças, quando eu disse, não, vamos no meu carro, já está
lá fora. Seguimos os quatros e para quem nos viu chegar na pizzaria de
Francesca, parecia acompanhar os sorrisos dos meus filhos, como a acrescentar,
que bela é essa família. Enquanto o pedido era feito, com as arengas sobre os
sabores, pedi um balde de long neck, sob o olhar cansado da minha mulher e me
servi antes de todos. A pizzaria de Francesca era o nosso cantinho, sempre íamos, tinha balanço, quadros de pintar e tantas outras distrações para os casais
com filhos, enquanto esperavam pelo sabor quentinho vindo do forno de lenha. Enquanto
a pizza não estava pronta, ligeiramente consumi meu balde, enquanto Carmen se
serviu de suco de abacaxi com hortelã. Ela estava em outra das suas loucas
dietas, emagrecendo a olhos vistos, tão esbelta quanto no dia em que me lembro de ter me apaixonado por ela. Durante o tempo do retorno do garçom, não falamos muito,
parecia que nem era necessário, quando muito as perguntas de sempre, o que
faremos no final de semana, você viu o carro novo do José, estou pensando em
fazer yoga, me matriculei num curso de arte daquele Instituto Multicultural da
Rua Cinco. Para tudo que escutava, sem ouvir, eu balançava a cabeça e dava a
maior força, até que o silêncio tomava conta de mim e eu apenas colhia as
palavras de Carmen para poder separá-las em letras de quatro em quatro. Parecia
que os números não ficavam no escritório, mas estavam enterrados na minha consciência.
A pizza chegou, pedi mais um baldinho, que veio suado, quase como se me
prometesse um refrescamento íntimo. Juntos, depois deles se alimentarem, nos
reunimos para irmos para casa, acenamos para outros casais conhecidos, e
pegamos a estrada. Na altura da Rua São Jorge, já garoando, virei para a
direita sem ligar a seta. O caminho era conhecido e meu desejo era deitar meu
corpo, pois na horizontal os números não me incomodavam. Não lembro de mais
nada depois daquela curva. Acordei no hospital, cheio de curativos leves,
cabeça ainda meio zonza, que pareceu entrar em curto-circuito, quando o médico,
apressado em atender os outros feridos, me deu alta, não sem antes dizer, sinto
muito. Só o senhor sobreviveu ao acidente. Do meu lado, ouvi gemidos. Pareciam também
terem sobrevividos ao crash, apesar de suas ataduras terem o alcance de uma múmia. A enfermeira, enquanto eu catava os rebotalhos da roupa
do escritório, chegou, com passo macio, perguntando se poderia ligar para
alguém da família para que me acompanhassem em casa. Eu só pensei que minha
família éramos nós quatro. Agradeci. E sai. No primeiro dos bares, logo na rua
ao lado direito do hospital, parei e bebi meus mortos. Os bebi por quatro anos
seguidos. E na conta dos quatro anos, quando lembrei que a-n-o-s significa a
conta perfeita na minha mente, parei de beber. Hoje fez seis anos. S-e-i-s-a-n-o-s.
E me sinto completo na incompletude. É isso.
Os aplausos foram fortes. E ele me
pareceu precisar de muita matemática das palavras perfeitas, porque enquanto
ouvia o cumprimento dos outros, seu rosto pedia desesperadamente um trago, para
afoga-lo num copo qualquer.
A história que veio depois da dele
parecia repetir um refrão que cheirava a cravos e defuntos. Assim como as
próximas narrativas. Todos diziam o próprio nome, seguido do Eu sou alcoólatra.
E eu pensava no Eu sou como a
primeira das coisas a serem ditas naquele círculo de cadeiras. Todos sabiam que
as histórias narradas ali, embaixo daquelas telhas vermelhas, seriam ecoadas
apenas nos ladrilhos desbotados, riscados pelo arrastar de tantas sessões e
pelo passo pesado de todos, como se o ritornelo circular daquela disposição de
corpos, criasse uma sinergia em que simultaneamente as leituras sobre o passado
fizesse uma combinatória singular sobre a posteridade das experiências.
O instrutor, que ouvia atentamente
a todos, ele também um ex, olhou para mim, que ali estava pela primeira vez e
perguntou se eu queria partilhar.
Cruzei minhas pernas, passei,
nervosamente, os dedos por entre os cabelos e falei bem baixo meu nome. Quando articulei
o Eu sou... entendi que aquele grupo não me pertencia. Que eu, ainda, não poderia
me nomear. E na ausência de mim, juntei minha bolsa e o guarda-chuva que havia
deixado no chão, ao lado da minha cadeira, saindo apressada, sem nem ao menos
me desculpar ou dizer até logo.
Demorei para achar as chaves do
carro na urgência toda que me habitava. Ao dar partida no motor, soou o rádio,
na voz de Gal, “um dia eu volto, talvez eu volte, um dia eu volto, quem sabe...”
Procurei o boteco perto do
hospital que Manuel falou e dessa vez, como há muito não fazia, pedi duas doses
duplas com gelo e limão. D-u-a-s-d-o-s-e-s-d-u-p-l-a-s-c-o-m-g-e-l-o-e-l-i-m-ã-o.
4 de 6. Os anos que eram dele, contados na dor de seu relato, me pareceu a soma
perfeita, o alinhamento de t-u-d-o.
Ou quem sabe, nada. N-a-d-a.
Ou quem sabe, nada. N-a-d-a.