quarta-feira, 28 de maio de 2014

O cavalo da chuva



Quase todos os dias, era dia de pegar estrada. As duas, quase sempre, viajavam uma na companhia da outra. Revezavam a direção, mas a estrada era sempre a mesma. Longa, muito longa. A lonjura era tanta que o silêncio de uma, o ronco da outra, parecia uma nuvem grávida, prestes a parir.

Viviam cansadas de viver naquela estrada. A sorte é que a paisagem roda igual à fortuna.

- Vixe Maria, hoje a gente não chega.

- Chega.

A vinda parecia mais curta. Havia um ponto em que uma delas suspirava, pensando que ia arriar suas saias. Na mesma curva, a outra só pensava que quanto mais perto, mais distante.

Um dia, numa subida, motor rugindo, uma disse, como a suspeitar da chuva que se avizinhava. – Estou triste, me sinto tão triste, estou nua.

A outra, tomada pela voz, pensou em retrucar. Apenas pensou: - a língua é um músculo. E faz tanto frio, enquanto ajustava a calefação. Mas quieta estava, mãos postas no volante e quieta ficou, não sem deixar de responder em pensamento - Isso passa, passa tudo, é como a estrada e a comida que nós damos nela, bocado por bocado, até farta-se de chão e regurgitar nos banheiros próprios.

- Se dependesse de mim [ela continuou a competir com a velocidade], hoje não estaria aqui, estaria lá, anos atrás, quando a casa era minha, quando ele estava vivo e eu tinha as minhas amigas todas.

- Hum rum – a outra resmungou, aumentando o som do noticiário da cidade mais próxima,  apenas estática.

- Eu fui feliz. Sempre tive minhas estradas, nunca fiquei sem andar. Mas as mãos que me recebiam e pelas quais me apaixonei, eram tão cálidas, afáveis, como se minha casa fosse como essa nuvem. Essa mesma, ali, olhe, apontando. Você consegue sentir a cor? A densidade? A poesia? Eu estava lá, mesmo estando cá, na estrada, mas estava lá, e era um sonho bom, como se meu corpo, suspenso no céu, rodeada do etéreo, daqueles de algodão doce, me diluísse num manto quente.

- Hoje tá frio, vai cair um dilúvio, resignada ainda uma delas disse. E junto ao som do motor, cansada de tanto mastigar comilança, veio uma bateria, como numa banda de jazz, a vocalizar a chuva que se alocava como uma estranha melodia, tal como a zuada do para-brisa, que já deveria ter sido trocado ontem.

- Eu nem creio na minha sorte, continuou a que falou primeiro, como se tivesse ainda um rosário todo. Sou justa. Justa com os outros. Aprendi, com minha mãe, lá daqueles lados, apontando para trás, continuou falando... Apreendi o outro. A ver o outro. Eu só não gosto de amar. Já perdi todos que amei. Eles já se foram, viajaram afinal. E eu sigo minha estrada. Meu maior medo sempre foi ficar só ou ficar inválida numa cama dependente de outrem.  

A outra, simplesmente acelerava, sentindo o carro como uma extensão sua. Seu carro nunca havia lhe deixado na mão. Zelava por ele como quem zelasse por um gatinho recém-nascido-órfão. Sem conseguir deixar de pensar, por que ela fala isso para mim, interrogações... Não sou obrigada a ouvir. Ela simplesmente continuou, no compasso de uma ópera, baixa, alta, crescendo, arrefecimento. A outra olhava de lado, balançava a cabeça, dizia tá, hum rum, certo, até que saiu um “e”, “foi”, “e depois...”.

No interlúdio, aquela que competiu com o som da estrada, indagou: e você?

A chuva foi embora, sempre vem e vai, pensava, enquanto acelerava, deglutindo quilômetros. – Meu pai dizia que quem trás a molhadeira e leva aonde quer é o cavalo da chuva, independente do meu ou do teu caminho.

Rodaram ainda algumas léguas ordinárias. Cada uma cavalgando seu cavalo, ou, quem sabe, uma na garupa da outra.