Eles
tinham vindo de longe. De muitas serras além. Não que precisassem escalar nenhuma
altura ou trouxessem na sua mala cordas, pinos ou alavancas. Era um grupo festivo,
trazia apenas as gargantas secas e a vontade de engolir o mundo. Se reuniam,
religiosamente, no altar de Baco, como a celebrar a vida, se juntando a outros,
que ali já estavam. A cidade tinha sido escolhida a esmo, uns pensavam, outros,
munidos de seus aparelhos rastreadores, não, sabiam que naquela pequena cidade,
encravada por entre montes, em que o vento tinha que pedir passagem, e chegar
de mansinho quando o sol se punha, a oferta e a procura pareciam se dar as mãos.
Eram
ainda jovens, quando ali botaram morada, fincavam chão, levantaram teto e construíram
famílias. As famílias que eles formaram sabiam da devoção sagrada de cada um
deles e, por isso, não eram empecilhos para os ritos, cotidianamente, prestados
entre eles. E se empecilhos fossem, eram deixados de lado. Era preciso celebrar
a vida.
O
curioso de todos eles é que a celebração acabou por tornar-se a própria vida. Um
deles, em depoimento, ansioso, sempre dizia - tenho que ir bater o ponto, mas
chego já. O templo escolhido era na recém inaugurada praça. Lá, improvisaram,
na alegria que era costumeira, banheiros para se aliviarem, sombras para os
dias mais quentes, um pendura para os dias sem espécie, afinal, tinham vindo de
longe e o importante mesmo eram estarem juntos.
Era um bando ruidoso, cheio de
gargalhadas, cuja (anti)monotonia era engolfada com a mesma voracidade daquele
espetinho duro que acompanhava os goles todos. Era um belo grupo, grande em sua
formação e grande em sua hospitalidade. Os que viam de longe, não compreendiam
como havia tanto a se dizer e a compartilhar. Mal sabiam os transeuntes que eles trocaram
de pele uns com os outros. Que eram uma tribo, um coletivo, sem papéis
pré-determinados e sem as regras hierárquicas. Se viam todos iguais, e assim
como riam um do outro, numa alegre comemoração, aprenderam também a rir de si
mesmos, compartilhando as piadas intimas.
Assim,
foram-se os anos. Foram-se décadas. Os filhos cresceram, algumas das
companheiras foram embora, uns enviuvaram. Outros ficaram órfãos. Muitos perderam
seus empregos. Mas a festa continuava, era isso que lhes permitiam se sentirem
vivos. As conversas e as rinhas só não caducavam, porque eles sempre lembravam-se
de esquecer e assim, reatualizam as histórias todas. Tinham sempre um
repertório completo delas, como se fossem autores de literatura feminina, o
mote era o mesmo, apenas cruzavam as personagens, misturando situações, etnias,
valentias e outros retalhos.
O
templo estava sempre aberto, o coração era grande, sempre cabia mais um - era o
lema. Alguns permaneciam um tempo, como a desejar aprender a rir também, numa
risada conjunta, espantando os fantasmas, espanando a pasmaceira, como se ali,
através das risadas e da melodia dos goles, existisse uma heroína desativada,
sem o perigo das agulhas infectadas. Alguns iam embora, se sentindo fartos de
celebrar a vida. Os outros transformavam a ida em fuga, na mesma cadência de
uma piada – só os fortes e os crentes permanecem, era o olé da tribo.
Mas
eles também falavam de suas famílias, daquelas que permaneciam em casa, à
espera do fim dos ritos. Era famosa a história, nunca esquecida, quando um
deles, narrava para todos, que já tinham ouvido e para aqueles que estavam ali
pela primeira vez, a história de sua filha – dia desses, minha bichinha, foi
num centro atrás de espíritos pedindo ajuda para eu deixar o templo. Ela foi
várias vezes, até que os espíritos disseram, como se tivessem ouvido o recado
de mim, minha bichinha, tem jeito não, desista – no que ele comemorava, pedindo
mais um vinho, como se só assim, pudesse engolir a própria piada.
Entre
eles, tinha um que era atleta. E sempre que entrava em regozijo partia para
casa numa carreira desabalada. Parecia que as rezas todas eram o combustível
necessário para tamanha façanha. Um outro, gostava de jogos. Levava baralho,
tabuleiro, dominó... até que as telas saíram das casas e ocuparam outros
ambientes. No templo, tinha uma grande, plana, com os canais especiais, que
passava de tudo, luta, futebol, basquete, tênis, só não havia espaço para as
novelas. As novelas, diziam eles, já bastam as nossas, enquanto continuavam
celebrando.
Num
dos encontros casuais, ocorreu algo inusitado. Apareceu no meio deles um rapaz
garboso, talvez uma década e meia mais jovem, todo alinhado, sorriso perfeito,
gestos teatrais, corpo de bailarino, pedindo para se juntar com eles na mesa
central. Alguém puxou uma cadeira, fique à vontade. Ele não disse muito quem
era nem de onde teria vindo. Mas também nem foi necessário. Logo foi
incorporado pela onda de alegria. É verdade, que alguns ficaram ensimesmados,
apenas consigo mesmo, se posso usar da redundância para melhor visibilizar a
entrada de tal elegante intruso. O sorriso perfeito de dentes alvos, fez alguns
lembrarem do riso de agora já destorcido. O corpo, rijo, também trouxe
lembranças para os dias das carreiras dadas nos jogos de pelada. O cabelo,
solto e brilhante, incomodou aqueles já acostumados com os bonés da vida. Mas nem
por isso, ele foi rejeitado. Não quando propôs, quase em seguida, esse jogo,
quem vai ganhar? Alguém topa uma aposta?
Parecia
que naquela mesa tinha um maestro a deixar rolar os ritmos das batucadas. Foi cerveja,
cachaça, vodka, riso, espetinho, cigarro, recordando a todos das antigas
reuniões. O intruso, sacou lápis e um caderno do bolso de sua calça e começou a
anotar os bolões. E assim, o rito se atualizou numa outra velocidade.
A
harmonia foi tão sincronizada que já brindavam pelos jogos que iriam ocorrer no
campeonato mundial de futebol. Parecia que o templo precisaria alargar seus
limites. Até que veio o primeiro dos jogos. Brasil x Croácia. Alguns perderam,
outros ganharam tostões. Tudo acompanhado e marcado por ele, que todos já
chamavam de Bookmaker. No segundo dos jogos, todos já estavam presentes. Aliás,
não todos. Um deles tinha viajado, como as viagens de antigamente, vestido no
paletó de madeira. Brindaram pelo companheiro que se foi, quase conseguiram
fazer um minuto de silêncio quando a notícia chegara, mas o jogo deu início e
logo a torcida habitou os últimos segundos.
Sempre
depois dos ritos, poucos conseguiam lembrar da linearidade dos acontecimentos. Era
o mote de outra reunião. Entre o esquecimento de um e o flash de outros,
conseguiam montar um surrealista mosaico dos dias anteriores. Mas a lembrança
mais arraigada era sempre recoberta tão logo pesava sobre a mesa.
Bookmaker,
então, propôs, sorrindo do jeito deles, brindando da mesma forma, posando para
as fotos, que futuramente seriam compartilhadas na rede, uma nova aposta, como
se a natureza, vida e morte, se naturalizasse assim, entre perdas e ganhos -
aposto que no próximo jogo João pega o bonde e viajará também. O jogo então
virou outro. E para cada jogo, a aposta era sobre a presença ou a ausência de
um. Que coisa mórbida, um ainda arriscou, quando outro disse, deixa de ser
besta, sabe jogar não?
O
Brasil teria ainda seis partidas pela frente. Afinal, era a Copa do Mundo. E
seis foram anotados, como se cada um dos nomes dispostos no alinhamento daquele
caderno obedecessem a mais estranha lógica daquela vida em tribo. Ocupados que
estavam em tal jogo, realinharam seus próprios times. Como se o time fosse um 'time', diziam, rindo dos ingleses. A única certeza era que todo jogo se encerra. Bookmaker,
não era de dar palpites, mas entre um drible e outro, resolveu abrir o jogo, quando
disse, eita gota, não sou a camisa dez, mas nunca perdi uma partida, sou o
artilheiro de todos os tempos, já me chamaram até, num livro qualquer, de
indesejada das gentes.
Se
entre eles tivesse um bom entendedor ou quiçá algum leitor, talvez o jogo
virasse. Talvez...