terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Born to die


Naquela tarde quando me dei por recebe-lo, fiz da minha vida um de tudo, sabedora do curto das horas. Sabia que seria o tempo de uma garrafa de vinho de taças em par, uma tarde de jour. Claro que havia duas garrafas a mais no armário da cozinha, só não desejava que minha ansiedade pudesse ser comprovada no meu refrigerador, não com ele, que sempre se fazia tão apressado, dizendo tenho duas horas.

Também queria ser assim, apressada. Mas meu tempo era o de antigamente. Nas duas horas para ele, passava semanas inteiras a pensar, hora e meia na manicure, cinco horas de faxina no meu apartamento, duas horas na depiladora e o tempo que se gasta para se ter uma epifania sobre que lingerie usar.

Se eu narrasse a tarde toda, você poderia achar que sou afeita a esses encontros. Não é o caso. Só agora me permiti. Minhas amigas, as de longa data, sabem do que estou falando. Sabem, inclusive, que o tom dessa minha narrativa poderia ser cômico, como se apenas eu pudesse rir de mim mesma. E apenas para mim e para elas, confesso.

Confesso que naquelas duas horas, do momento em que ele tocou na minha campainha e chegou todo ligeiro, afoito numa tarde de outubro, como se só tivesse me visto em fevereiro, tive receio de que não me reconhecesse em maio, de que passasse pelo umbral da porta em julho, cruzasse a ante sala em agosto e deitasse na minha cama em setembro, tivesse finda as duas horas em novembro, quando o tempo se revelasse o de um ano inteiro.

Ije, disse, enquanto ele estava sentado no meu sofá de algodão e passava uma mão por entre os seus cabelos, enquanto a outra ocupava de segura-lo pelo queixo. Escolhi essa calcinha para você.

Ele rapidamente se refez. Deu mais um gole no vinho ainda frio. E me olhou profundamente, enquanto dizia, nunca a vi tão bela, tão bela. Quero beijá-la até sentir seus lábios tremerem, como se ali fosse um rosto, afogueado, de todo ardente, quando me disse infinitos ardores e me declamou todos os fervores.

Seria assim minha narrativa, se fosse por acaso publiciza-la.
Mais do momento em que disse ije, depois da ante sala, no som de Born to die, que comprei a duras penas, retruquei como se soubesse inglês,


Keep making me laugh
Let's go get high
Road's long, we carry on
Try to have fun in the meantime.

Ele nem ao menos ouviu ou me ouviu. Tampouco sabia inglês. Mas não era de todo despido de sabedoria. Sob o fundo inglês, o algodão, a fábrica, riu gostoso e indagou sobre o tempo, sobre as dobras, sobre as intensidades, fazendo do vinho e da música o que nem eu sabia ser capaz.

Pegou no nude da minha roupa intima e fez milhões de tricôs. Desse tricô, que brincou como se fossem pelos púbicos, fez tranças. Das tranças que teceu, fez cordas, que debaixo para cima, ia escalando, com se seus dentes a fincar as minhas coxas, fosse a melhor aplicação do dry looling.

Enquanto ele falava com minha lingerie, já desfigurada, posta de lado, disse para ela, como ela era úmida, gostosa, farta, intumescida na mão e na boca, como uma verdadeira buceta devia ser.


Eu não sei o que sentir, nem ao menos o que dizer as minhas amigas. Senti que naquele momento em que ele fez um monologo com ela, falava a mim e a todas depois de mim, mais que eu queria que fosse sobretudo a mim. E como eu odiei as que vieram depois de mim, odeie apenas, naquele momento único, em que ele me beijou como se fosse a única buceta possível de tanta sede, como se minha buceta o fartasse e não fosse tudo.

E, talvez, numa tarde qualquer, quando eu quiser fuder, ligue pra ele, e diga, você tem duas horas, venha e me coma, nem fale muito, só tenho duas horas. E estou sem lingerie.




Da ultima vez que publiquei, meu filho disse, pra um conto, você escreve muito pouco, pra isso é excesso. E assim...

terça-feira, 25 de novembro de 2014

A volta dos que não foram



Como o herói da história que meu avô sempre contava depois da ceia, ao meu pai, fui batizado Ulisses, filho de Hércules, neto de Gideão. Meu avô gracejava sempre que a nossa estirpe era de heróis, das que figuravam nas escrituras mais antigas, ainda que suas mãos mal pegassem em lápis ou folhas, como se o que viesse antes do nosso vivido, dependesse apenas de sua fala rápida, grávida de uma memória prodigiosa.

Meus antepassados, assim como eu, desde cedo eram introduzidos nas lides da vida. Cresceram no trabalho com a terra, sulcando aquele barro vermelho, que não apenas ocupava o vinco das unhas, mas tomava conta da pele inteira. Sempre que eles despontavam, sob o pôr do sol, no alcance dos olhos, vinham trigueiros, risonhos e vermelhos, sobretudo, vermelhos, queimados do sol, banhados da terra, como se o corpo deles fosse a extensão do que faziam entre o café com batatas, servidos ainda com o canto dos galos, e a sopa de feijão de todos os fins de tarde.

Quando chegou o tempo que faria parte dessa companhia, meu avô ainda era vivo. E se eu achava que ele era um prosador de mesa cheia, descobri que as palavras eram mais abundantes do que as sementes que eu tinha que jogar entre um sulco e outro daquele vermelhão sem fim.

Assim como as tardes encarnadas, vi minha pele se pintando em meio ao falatório do meu avô e ao ritmo das enxadadas do meu pai. Curiosamente, meu pai não falava coisa alguma, quando muito resmungava que havia ouvido, depois de ser chamado com atenção.

Logo, minha mãe, que nas poucas horas que lhe sobrava das tardes de verão, se pegava no seu bem mais precioso e se punha a costurar, ganhei de presente meu primeiro par de calças, dizendo, uma roupa de gente grande, para aquele já tão crescido. Corri feliz como as galinhas depois de um dia de debulhes e sobras. Senti que ali começariam as minhas histórias e que eu semearia os que viriam de mim com o vivido de antes e o vivido dali em diante, como se o tempo pudesse ser reto em sua sabedoria e a minha vontade, de tão soberana, congelasse meus sonhos de menino a me alimentar pela vida afora.

Mas a vida, essa sim, fica bulindo nas nossas histórias. E quando ela falha, não tarda em dizer quem é que manda. Um dia, meu avô viajou, como se a prosa fosse o pior dos amigos cobrando usuras antigas, num tom zombeteiro da volta dos que não foram.  E os dias na terra passaram a ser habitados apenas pelo ritmado do meu pai, silencioso como só ele sabia ser.

Cada dia era mais longo do que o outro. A batata que antes era colhida e cozida para anunciar a lide, parecia triste, amarga, cheirando a ferro curtido de ferrugem. A sopa, que sempre anunciara os risos, as pelejas, as fanfarras, minguara igual as bravatas do velho herói.

Dei então pra me furtar do que sempre havia conhecido. Peguei mulher, juntei barriga, dei para jogar, desaprendi do ouvido, perdi dentes, fermentei o cereal plantado, cometi abusos e fui abusado quando, então, pelas estradas me joguei.

Virei caixeiro, negociante, marinheiro, cafetão, professor, mula, pesquei sereias, cacei baleias, fiz filhos, tomei tragos, provei coisa que não era de homem macho e pelo mundo todo fiz mil voltas, até me entontecer por inteiro.

Um dia, parado na janela de um prédio alto, pensei sobre aquele mundo  vagalume e para onde ainda me levaria, que milhões de novas coisas botaria em minha conta, quando me peguei lembrando de uma das histórias do meu avô, quase como se eu pudesse ouvi-lo, me chamando de novo para sentar em nossa mesa.

Essa história é a história de um grande guerreiro. Ele era forte como o touro escolhido pros cruzamentos. Ágil como guinés nas manhãs de um sábado de festa. Fértil como ele só, era pai de uma dezena de meninos. Tinha uma mulher que era linda que só ela. Um dia chamaram ele para apartar uma briga de vizinhos que viviam trocando tiros e injúrias. Lá das terras do alto da serra. E ele foi, foi com seus filhos mais velhos, já todos burregos grandes, como se fosse o general do exército francês. O caminho foi tão longe que no meio já não tinha carne seca nem pó para o café. Mas eles não voltaram atrás no prometido, o tamanho do herói era o tamanho da palavra dada. Sua mulher não tinha gostado dessa aventura, sabia que o tempo que ele havia dito que estaria em cima daquela serra, seria mais alto que ela estava disposta a esperar.


Os filhos que com ele foram, fincaram casas pelo caminho, casaram e hastearam bandeiras mundo afora, como se o caminho de ida e de vinda, deixasse de ser uma reta. Eles ali prosperaram, desbravam mato, fizeram fazenda, uns criaram gado, outros descobriram ouro. E de lá, de onde tiveram parada, mandaram presentes para sua mãe. Nunca faltou nada a ela, nada que ela não gostasse de comer e de vestir. A fartura chegava a ser tanta, que os vizinhos, vira e mexe, iam se empanturrar por lá. Tinha uns que levavam violas, outros sanfonas, sem falar nos zabumbeiros. Muitas das músicas que eram tocadas nos forrós improvisados, como se cada um dos dançantes já não soubesse dos dias que eram o das festas, falavam das histórias do grande herói. Já sabiam até como ele deu fim à guerra tão grande foi o sucesso de findar a peleja. Mas ninguém sabia onde danado ele estava. 

      Tinha até um concurso de adivinhação para dizer o dia que ele voltava. Parecia até que tinham dado destino nele até que ele voltou, porque o que faz um grande herói é a hora de ir e a hora de voltar sem perder a própria palavra, pois mesmo quando dá uma coisa dentro da gente, de sair mundo afora e ganhar todas as batalhas, se aprende que a paz não só se ganha com a guerra. 

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Dexter mata Lobão!


A grama do vizinho verdejava sem as flores malditas. Mas nem sempre fora assim. Alguns anos atrás ele chegara com apenas uma pequena mudança. Percebi, enquanto verificava a caixa dos correios, que ele era de parcas posses. Não tinha mais do que um colchão, uma mesa de quatro cadeiras, uma geladeira velha e seu gato. Lembro que na época pensei em como ele havia conseguido entrar na nossa vizinhança, mas logo tratei de esquecer, não parecia que seria permanente.

Dias depois de sua chegada, fiquei levemente irritado com o som que vinha desse meu vizinho. Parecia que as vozes completavam a ausência de posses. Eram vozes de muitos e todos falavam com um estranho sotaque. Me aproximei da cerca viva que nos separava querendo descobrir de que lugar ele vinha. Não soube discernir totalmente, mas alguma coisa me dizia que eram nortistas. Não que tivesse descoberto alguma cadência própria. Mas pela intensidade do barulho, cordas, coros, batuques e pela cor marronzinha do vizinho, acreditei que ele tinha descido de lá.

Talvez eu até tivesse embebecido mais minhas rosas, investigado mais um pouco, se não tivesse tido um susto daqueles, quando o gato do vizinho, desses sem raça definida, escondido por entre os arbustos, me pegou olhando, como se dissesse, que indiscreto. Tratei logo de arrumar minhas ferramentas de jardim e voltei para o interior da minha casa.

Higienizei as mãos no lavabo do piso térreo e lavei o rosto. Se fosse um dia como outro qualquer, como os dias de ontem, teria passado a loção no rosto, tomado meu leite quente com amêndoas, conferido o jornal on line italiano, e ido para meus lençóis egípcios, ligado minha Foscarini e folheado os livros que o arquiteto me indicara para deixar a mão na mesinha de cabeceira. Seria o sono certo, o sono dos justos. E nunca havia me falhado.

Uma hora depois, farfalhei os panos, me descobrindo todo, como se o som que se propagava pelo mesmo céu, meu e do vizinho, tivesse invadido meu lar.

No outro dia, quando cheguei no escritório, cheguei engomado, terno em riste, riscado, o mesmo que havia usado para os dias especiais. Segui corredor adentro, parando apenas para averiguar minha agenda com a secretária, quando, com a mão já posta na empunhadura da minha sala, ela disse: O senhor está precisando de algo? Claro que disse não, claro que de forma ríspida. Apenas não sei se ela percebeu minha hesitação. Mas ela não era paga para perceber nada, lembrei, enquanto assinalava na agenda, um lembrete de substitui-la.

O caso é que aquele dia bagunçou o resto do meu tempo. Entre um processo e outro, enquanto despachava, lembrava da advertência do gato e do olhar, levemente espantado, da secretária, que cuidei de trocar no dia seguinte.

Em casa, já ambientado, preferi ficar sem ir ao jardim. Correram dias. Meses até. Nunca fui muito católico, mas acompanhei, toda noite, o jornal italiano quando noticiou a aposentadoria do papa alemão. Cheguei a pensar, que tempos loucos esses, em que festejam a saída de um europeu, salvo de passagem, com extremo bom gosto, pois secretamente me regozijei quando vi que ele havia usado o mesmo sapato vermelho que comprara para os dias de verão, ser substituído por um argentino franzino, que falava em marte, que falava em gays, que falava neles. Daquele dia em diante, preferi os noticiários ingleses. Estava farto da cobertura italiana.

Eu sabia, pela ancestralidade do meu nome, que ali, onde eu nasci, não era a minha origem. Cheguei até a pagar, uns trocos qualquer, ao melhor historiador das origens, queria mandar tecer meu brasão, em cima da lareira, pelas tecelãs usadas no último desfile prét-a-porter, mas me neguei a pendurar a renda das paraíbas. Onde eles estavam com a cabeça?

Em meio a tudo isso, tinha o meu vizinho. Ele ainda existia. Não sei se outros móveis haviam sido despachados no seu endereço. Mas, com certeza, sua velha mudança ainda estava lá.

Outro dia, esbarrei com aquele farsante de historiador que havia contratado em frente a área comum do meu condomínio. Audacioso, me informou sobre seu último artigo publicado, falando asneiras sobre as origens rurais das famílias que colonizaram meu país. Cortei rapidamente a conversa, não sem perguntar para que casa ele estava indo. Ele respondeu e eu senti uma fúria me tomando conta, como se eu reconhecesse as vozes do meu vizinho.

Nesse dia, voltei ao meu jardim. Queria ouvir, por entre o eco daquelas parcas posses, se meu nome seria anunciado. Não lavei as mãos, não peguei minhas ferramentas, apenas me aproximei da cerca viva e vi que ali era um dia de festa. Ouvi quando cantaram em coro que dois e dois eram cinco, que a estupidez era maior, as vivas a sociedade alternativa, que se vive para consertar, que a mente está na imensidão, que pelas vias se escorre o sangue e o vinho, que nem se voa nem se pode flutuar, que o dia é branco, que o jogador conhece o jogo pela regra...

Me agachei perto da mesma brecha que havia olhado no primeiro dia. Havia esquecido do gato, quando ouvi o maior dos miados: Nós gatos já nascemos pobres ...

Voltei imediatamente. Procurei na minha despensa. Peguei caviar-salmão-linguado-meu-melhor-vinho-um-charuto-de-fora-meu-melhor-sorriso-como-se-fosse-o-primeiro-dia-sem-deixar-de-levar-alguns-vinhos-italianos-da-minha-adega-preparei-como-quem-azeita-tudo-toquei-na-campainha-e-dei-as-boas-vindas-quatro-anos-depois.

O vizinho agradeceu. A visita disse: ooooi. Me virei rapidamente, me desculpando por não entrar. Fiz um afago no gato, meio sem graça, e voltei para casa.

Dias depois, o quiproquó nos jornais. As manchetes: A vizinhança desvalorizada. Professor de esquerda com rituais satânicos. Orgia e permissividade. Empresários fogem para Miami. Juiz processa agente do Detran por estar embriagado. Helicóptero com cocaína é da família do senador. Dexter mata Lobão! 


ps. acompanhei todas as notícias. Eu e o gato. O adotei, pelo bem da comunidade. Era o meu pro-brono-especial. Só lamento ele não ter raça alguma

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Eu sou...


Meu nome é Manuel e eu sou alcoólatra. Hoje são seis anos sem tomar uma gota de qualquer bebida barata ou não. Mas minha dor contabiliza 10 anos. São dez anos que não escuto a barulheira de Ellen ou de João, quando ao chegarem da escola, perguntavam a sua mãe Carmen, minha esposa, papai chegou? Ela, que também já não está no meu cotidiano, dizia sempre aos nossos filhos, ele está quase chegando.  Não por acaso sou contador da firma que fora do meu tio. E por isso não esqueço a contagem de cada dia passado do que aconteceu há dez anos atrás, quando cheguei tarde para o encontro com as crianças, causando espirros na mais alérgica delas, quando disse, desculpem papai, hoje o dia foi longo, foram muitas contas a prestar, que tal irmos todos comermos uma pizza. A criançada adora uma pizza. Carmen não, seu pesar de mais uma noite a dormir com o ronco da minha bebedeira, lhe fazia pensar na farofa de cuscuz e na galinha que passara a tarde toda a temperar. Estava cansada, eu sabia, como sabia também que não adiantava justificar o dia todo, pressionado que estava para pôr ordem nas contas da empresa. Ela não entendia que o fato de ser sobrinho do chefe de tudo, me tributava uma carga maior. E que eu precisava da saída, depois do trabalho, para encontrar com os amigos e sentir que meu corpo era como aquela cerveja aberta, despressurizando o dia. Carmen, conformada com a alegria das crianças, enquanto guardava nas suas gavetas seu próprio desgosto, sorriu e disse naquela voz de mãe, a Ellen e a João, não esqueçam seus casacos, a noite promete chuva. Tentou pegar a chave da perua, que costumava rodar pela cidade, preenchendo de víveres para o consumo da semana, para os tantos jantares não comidos por mim, sem falar nas tantas tralhas das crianças, quando eu disse, não, vamos no meu carro, já está lá fora. Seguimos os quatros e para quem nos viu chegar na pizzaria de Francesca, parecia acompanhar os sorrisos dos meus filhos, como a acrescentar, que bela é essa família. Enquanto o pedido era feito, com as arengas sobre os sabores, pedi um balde de long neck, sob o olhar cansado da minha mulher e me servi antes de todos. A pizzaria de Francesca era o nosso cantinho, sempre íamos, tinha balanço, quadros de pintar e tantas outras distrações para os casais com filhos, enquanto esperavam pelo sabor quentinho vindo do forno de lenha. Enquanto a pizza não estava pronta, ligeiramente consumi meu balde, enquanto Carmen se serviu de suco de abacaxi com hortelã. Ela estava em outra das suas loucas dietas, emagrecendo a olhos vistos, tão esbelta quanto no dia em que me lembro de ter me apaixonado por ela. Durante o tempo do retorno do garçom, não falamos muito, parecia que nem era necessário, quando muito as perguntas de sempre, o que faremos no final de semana, você viu o carro novo do José, estou pensando em fazer yoga, me matriculei num curso de arte daquele Instituto Multicultural da Rua Cinco. Para tudo que escutava, sem ouvir, eu balançava a cabeça e dava a maior força, até que o silêncio tomava conta de mim e eu apenas colhia as palavras de Carmen para poder separá-las em letras de quatro em quatro. Parecia que os números não ficavam no escritório, mas estavam enterrados na minha consciência. A pizza chegou, pedi mais um baldinho, que veio suado, quase como se me prometesse um refrescamento íntimo. Juntos, depois deles se alimentarem, nos reunimos para irmos para casa, acenamos para outros casais conhecidos, e pegamos a estrada. Na altura da Rua São Jorge, já garoando, virei para a direita sem ligar a seta. O caminho era conhecido e meu desejo era deitar meu corpo, pois na horizontal os números não me incomodavam. Não lembro de mais nada depois daquela curva. Acordei no hospital, cheio de curativos leves, cabeça ainda meio zonza, que pareceu entrar em curto-circuito, quando o médico, apressado em atender os outros feridos, me deu alta, não sem antes dizer, sinto muito. Só o senhor sobreviveu ao acidente. Do meu lado, ouvi gemidos. Pareciam também terem sobrevividos ao crash, apesar de suas ataduras terem o alcance de uma múmia. A enfermeira, enquanto eu catava os rebotalhos da roupa do escritório, chegou, com passo macio, perguntando se poderia ligar para alguém da família para que me acompanhassem em casa. Eu só pensei que minha família éramos nós quatro. Agradeci. E sai. No primeiro dos bares, logo na rua ao lado direito do hospital, parei e bebi meus mortos. Os bebi por quatro anos seguidos. E na conta dos quatro anos, quando lembrei que a-n-o-s significa a conta perfeita na minha mente, parei de beber. Hoje fez seis anos. S-e-i-s-a-n-o-s. E me sinto completo na incompletude. É isso.

Os aplausos foram fortes. E ele me pareceu precisar de muita matemática das palavras perfeitas, porque enquanto ouvia o cumprimento dos outros, seu rosto pedia desesperadamente um trago, para afoga-lo num copo qualquer.

A história que veio depois da dele parecia repetir um refrão que cheirava a cravos e defuntos. Assim como as próximas narrativas. Todos diziam o próprio nome, seguido do Eu sou alcoólatra.

E eu pensava no Eu sou como a primeira das coisas a serem ditas naquele círculo de cadeiras. Todos sabiam que as histórias narradas ali, embaixo daquelas telhas vermelhas, seriam ecoadas apenas nos ladrilhos desbotados, riscados pelo arrastar de tantas sessões e pelo passo pesado de todos, como se o ritornelo circular daquela disposição de corpos, criasse uma sinergia em que simultaneamente as leituras sobre o passado fizesse uma combinatória singular sobre a posteridade das experiências.

O instrutor, que ouvia atentamente a todos, ele também um ex, olhou para mim, que ali estava pela primeira vez e perguntou se eu queria partilhar.

Cruzei minhas pernas, passei, nervosamente, os dedos por entre os cabelos e falei bem baixo meu nome. Quando articulei o Eu sou... entendi que aquele grupo não me pertencia. Que eu, ainda, não poderia me nomear. E na ausência de mim, juntei minha bolsa e o guarda-chuva que havia deixado no chão, ao lado da minha cadeira, saindo apressada, sem nem ao menos me desculpar ou dizer até logo.

Demorei para achar as chaves do carro na urgência toda que me habitava. Ao dar partida no motor, soou o rádio, na voz de Gal, “um dia eu volto, talvez eu volte, um dia eu volto, quem sabe...”

Procurei o boteco perto do hospital que Manuel falou e dessa vez, como há muito não fazia, pedi duas doses duplas com gelo e limão. D-u-a-s-d-o-s-e-s-d-u-p-l-a-s-c-o-m-g-e-l-o-e-l-i-m-ã-o. 4 de 6. Os anos que eram dele, contados na dor de seu relato, me pareceu a soma perfeita, o alinhamento de t-u-d-o.

            Ou quem sabe, nada. N-a-d-a.



segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O quinto



Ela era a senhora do mundo. Semeava a terra, o vento, o ar e o fogo, não necessariamente nessa ordem. Apesar do saber só ser da Senhora, ela era magnânima. Instituiu como A primeira reforma, a cartilha a ser doada para todos. E nela, doou, como quem multiplica a vida, a consciência para todos. Disse que os tempos de outrora era tempos de desordem, tempos de amores vis, de quiproquós insignificantes, de colonização da legião, das paradas de multidões sem cerne, só carne sem o dom da vida, de corpos sem espíritos.

Era preciso, aprendi pequenina, não pelos números de anos, mas pela ausência de memória, que a vida de outrora, do Antes de tudo, as pessoas tinham a barriga cheia, mas eram vazias do Espírito. Não se conectavam com a terra, com as flores, com as árvores, que deviam crescer, lado a lado, para que a colheita, de cada uma das culturas, não se misturasse com as outras. Os campos, de terra e de água, fecundadas, era verdadeiras miragens, coisas para um homem só.

Eu cresci colhendo soja. Minha mãe colheu soja também. Soube que minha avó idem.

Das antigas escrituras, que achei guardada enterrada ao lado do túmulo da minha bisavó, cuja letra até hoje sinto dificuldades em decifrar, tinha mais páginas do que cinzas.

Não que eu tivesse desejado profanar o corpo de quem um dia fora o depósito de algo maior. Não fui eu que perscrutei a superfície das lápides remotas. Era mais uma das reformas da Senhora. Aqueles cujo batismo não foi no Templo Divino, que eram os chamados seguidores da legião, que pariram sem fé, que deram sem autorização, que não procriaram na Lei, que não racharam os seios aos filhos, que afrontaram o locatário do divino... Desculpe, pela falta de todos os registros, eu ainda sou da quarta série. Não lembro de todos os Mandamentos. Eu apenas passava por lá, quando as máquinas começaram a revolver a terra, desocupando o solo profano, quando vi, que ao lado da terra revolvida, brotava como que fosse o pecado das profundezas todas, centenas de livros e todas eram assinaladas pelo nome da minha bisavó.

Sai ligeira de lá, com o catecismo embaixo do braço, já sentindo o corpo em brasa, como se fosse padecer pela ausência da Senhora. Juro, Senhora, juro aqui, nesse depoimento, que foi assim. E, por essa falta, me martirizo.

Acho que quando voltei ao desterrado, voltei porque estava em febre. Não tive intenção de ir contra as reformas. Sei que o espirito fica abaixo do meu peito. Sei que preciso ouvi-lo, mas do que a minha cabeça, que insiste em incendiar minhas noites. Sei também que minha mente deve saber de onde o Espírito me chega. Eu sei de tudo isso, minha Senhora. Nem fui a primeira da classe. Demorei um pouco para entoar os cânticos. Sei que errei em algumas falas. Mas eu sempre semeie aquilo que me foi ensinado.

Primeiro a Senhora. Segundo Ele. Terceiro a Família.

Mas ela era minha bisavó. Era família. E não sabia do seu passado pregresso. O importante não era o presente, Senhora? Pensei que indo lá, sabedora da devoção das minhas origens familiares inteiras, estava preservando o primeiro dos mandamentos.


Sei qual o meu lugar, sei do que ouvi da minha mãe, e do pouco que pude escutar da minha avó. Já estou perto de fazer filho, queria poder dizer a ele ou a ela, da origem de quem plantou num campo inteiro e comeu da sua mão. Queria dizer ao meu filho, cujo pai seria da sua escolha, que a terra plantada e a colheita levada, era o inteiro da vida da nossa família.

Mas eu não pude deixar de ler. Mas eu não pude deixar de ler. Li tudo. Li sobre um tal de Pessoa. Saramago. Manoel de Barros. Orwell. Marx. Rowling. Huxley. Palahniuk. Collins. Foucault. Dick. Loureiro. Assaré. Dickens. Sade... li todos no máximo de dois dias, como se tivesse furtado algo que meu espírito devolveria depois de um fim de semana.

Durante esse tempo, não comi o fruto da terra, não bebi água. Me ausentei do grupo das queimadas e tampouco consegui respirar como antes. Sei que meu tempo se foi. Já gastei o quinto da hora me dada, mas agora estou pronta para ir. Liguem as máquinas. Que o filho que hoje será preservado da minha morte, tenha todos os elementos. Os que a Senhora professa e os que acredito serem minha herança.


sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Ressuscita-me

Sozinha, ao seu lado, enquanto toma a sua cerveja, pedindo, mulher, seja boa, traga outra, fico imaginando, por quantos acertos tão mais, terei que responder. Você me olha de lado, dizendo que meu penteado tá chique, mas era o mesmo de onze meses atrás e agora sim. Espere mais um pouco. Disse tudo isso, sem nem ao menos olhar, enquanto trocava os canais.

Eu sabia, quase sem saber, que o tempo passado, oito vezes oito, seria a nossa conta do infinito, mas não estava pronta ainda por me dar por vencida. Nem sei que guerra era essa que travei por tanto tempo. Nosso melhor de nós já era falecido. Ele e sua guitarra azul. Morreu de over, me disseram, naquela que era a melhor das estações. E eu sem saber querendo ver aquela berrante tatuagem de coração vermelho coroado de espinhos, apenas desejando, bata novamente por mim, por favor. Ele viajou cedo e deixou suas mochilas todas, no mesmo quarto que hoje é usado para as costuras que faço, tentando aqui e ali, o trocado para o pior dos meus vícios.

No íntimo, daquela intimidade que nem se confessa em pesadelos, pedi a Deus, me leve antes, não me deixe sem o dia em que a falta supurasse todos os meus quereres, como se ao pedir tanto, fizesse do outro, lugar de silêncio, de todo silêncio que aprendi a conviver com ele, que me pede outra cerveja. Sabia que a fala terminaria logo, no refrigerador, tinha apenas um par delas.

Mas ele nunca foi de muitas palavras. Quando muito dizia, Deus proverá. E assim foi me fiando e eu, toda fiada, como quem fizesse do dia a dia a coleção dos melhores retalhos, me ocupasse apenas a coser.  E olha, que a colcha daria para cobrir a cama de muitos de mim, apenas de mim, como se a colcha e a prateleira fossem a soma da minha vida toda.

Como no dia em que ele, em meio a festa do milho, na fazenda antiga, quando todos celebravam a chuva, olhou para mim e disse, quero fazer uma fazenda com você, daquelas enfeitadas de mil tricôs, bordados e ardores. Logo eu, que só gostava de pinturas, sonhava em ser artista, queria que meu rosto fosse a tela em branco, cujo desenho, pudesse ser rabisco, pudesse ser estilo, pudesse ser o milagre que me foi negado no dia em que nasci. Da fazenda dele, sonhei com milhões de paisagens. Me senti terra fecundada. E me despedi dos mil artistas que me viriam.

Já levo, digo da cozinha, enquanto destampava a saideira. Tinha, antes de pensar em somar, apenas um par. Ao entregar, em mãos, boa mulher que sou, pensando na fazenda que deixamos para trás, eu e ele, sem o som da guitarra que alegrou e preocupou nossos dias, apenas eu e ele, despido de filho, sem os netos a acenar com a posteridade, sem as fogueiras, o milho e o céu, solucei, como se tivesse, entre uma ida e outra, entre a cozinha e a sala, emborcado o múltiplo do bebido da vida dele inteira.

Fiquei embriagada, tropecei sobre ele e o cortei na mão em que ele esperava ser servido. Ele, arquejando, disse, mulher, você me cortou, e eu apenas disse, me dê um gole, pintando, finalmente, meus lábios de rubro.

E foi assim, não como era uma vez, sem contos nenhum, que teci mais uma peça, depois de décadas, para a colcha que desconfiava dos acasos, como se a pintura, enfim, tivesse a mão do sentido ou apenas mais uma peça cerzida...


Ps. eu teria que terminar, mais tenho problemas. Mas pela primeira vez, a última das cervejas abri para mim, apesar de bebermos os dois. E nunca me senti tão maquiada.


sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Não sei


Bote isso não amor. Ele não disse que recebia, todo mês, salário sim, salário não, por mais desinteressante que isso seja. Agora não, cheguei querendo funkear, ela disse, rebolando ele todo.
Mulher, veja melhor, você todo dia rebola. Eu nem rebolar gosto. Vc chega em casa, joga a camisa na minha cara, vai fazer o cuscuz, ignora nosso gato, sem ver direto, com óculos juntado de durex, reclama da minha cachaça, fala que tudo tem que mudar. Fala que eu sou excessivo na minha cerveja, escute essa porra dessa música. Que nunca danço e quando vc dança, desmunheca. Não faça assim, faça, e me asse.
Vc me beija, boca grande, como se eu desperdiçasse a melhor das chupadas. Como se sua boca, no meu pau, fosse a melhor coisa do mundo. E quando vejo suas fotos, invejo quem possa vir a lhe ver. Sabem de nada, inocentes, não sabem que quando vc se deita, toda vergada, mil piruetas, com as cores todas no seu rosto, no sonho bom, sem pensar no outro, vc já dormindo, diz, não adianta nem tentar me esquecer.
Lembro, no dia que ele me deixou, pequeno ainda, naquela cidade, que muitos cabeludos andavam juntos, de calças desbotadas, dizendo já é da minha cabeça, eu sei que consigo ser melhor, um dia, um dia...
E assim ele foi embora. Nunca mais ouvi falar em seu nome. Até o dia que ele se candidatou. E, hoje, minha mulher, disse, ele me lembra vc.  Enquanto me pedia que trepasse para ter outro filho.  
E ela estava com a lingerie. Ela tinha as curvas todas. A mais saborosa das bucetas. Se eu gostasse disso, lambia ela inteira. Passava folha por folha, como quem lê como um livro precioso, daqueles raros... cujas folhas, há muito não tocadas, dissesse ao primeiro dos pesquisadores, bem assim, estou a sua disposição.
Nem gosto de ler. Muito mal assisto filmes. Sou ocupado com a pior das anedotas. Venho, certeiro, dia sim, dia sim, toda hora, aquela mesma do cartão batido. Venho e vou e ela ainda quer ser comida, quer fazer mais, quer filhos, filhos como eu.




....


Ele bebe demais. Trabalha demais, tempo, por que vc não entra num acordo comigo?
Limpo o dia todo, limpo assoalho, limpo borralho de nariz, limpo o que não pode ser limpo.
Tomo banho, como quem lava um assoalho, peça por peça, folha por folha, afinal, nunca gostei do meu cheiro, nunca gostei daquilo que, em mim, me chamava tanto.
E assim eram os dias, seja lá que dias foram aqueles, anos, talvez meses. A irmã dele, um dia, me deu, numa brincadeira de quem vai se amarrar, um fio dental, de renda amarela, e todas riram juntas, hoje vc vai dar... é só tomar um vinho, desce que é uma beleza.

  ....


Ela trouxe vinhos, cerejas e camisinhas. Eu sou homem. Eu sou homemmmmmmmmmmmmmmmmmm...... Ela escolheu a música escolheu quem gozou, o tom, o toque. E, durante, pequenos bocados, bocadilhos, quando pensei nele, enquanto ela em mim, me sugava, pensei em quanto me faço homem...









quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Geni


Me disseram um dia que existia uma dicção feminina. Não sou mulher, sou gata. Dessas de rua, que num muro grita um miau qualquer. Como se tivesse um guizo, e dele pudesse voltar. Mas sou gata. E quero a rua.

A rua me vem como uma avenida. Dessas de postes robustos. Dizendo a ele, toda gata, a rua não é difícil, siga a linha dos postes em arvores. Sem acento ou acentuadas, apenas siga as linhas.

Mas sou gata, gosto das costas azunhadas. Gosto das linhas ditas, mas gata como sou, digo a ele, que me disse em segredo, como numa mensagem qualquer, bela como tu és, assim, nesse retrato, te comeria inteira.

Ele, gato, negro, daqueles de telhado de zinco, nem sabia, que ela, toda noite, antes da pele macia, quando passava pelo em dia, a noite, toda macia, era nele, que ela adentrava em dia.

Nem era dica, nem música, apenas uma rebordosa tardia, daquelas de unhas em gato, como se o corpo dele, fosse um teclado que temia.

Talvez isso fosse uma poesia, se lido como a gata escrevia. Mas a gata apenas atrevia, quem sabe um dia seria.

E assim foi dito, como os poetas de outrora, a festejar um dia, tardio como o mais maldito das rimas, eu, que soberba me fazia, narrador do outro, apenas dizia^^

Numa noite qualquer eu te pego em pelo, sem fala, sem desassossego. Não quero saber quem mãe te pariu, nem muito menos com quem dormiu, pego você na cama, você que sempre sorriu, com quem noites pariu, pego você como quem fica na cama, de quatro bandas em chamas, te dizendo, venha, vá, como fala um estrangeiro dos outros lados do mar.

E eu sei que dessa rima, do lado de cá, gata que eu sou, ocupada que estou, eu sou apenas, de todas elas de lá, a ... quem sabe, deixar o Whisky de lado, e beber leite gelado. Gata que sou...

Ps. E assim, vou saber se você ouve a canção que um dia pensei em dizer ....


quinta-feira, 31 de julho de 2014

Teresinha


Teresinha phoda, para os íntimos, bem íntimos. Fazia tempo que não sentia a chamada. Não que o relógio tivesse parado, apenas ela não via mais o tique-taque das passagens, ocupada que estava arrumando a casa, o tio, a conta, o carro, o trabalho... Ninguém diria que Teresinha não phodia mais, parecia a única das mulheres que poderia rir da demanda medonha dos dias ordinários, dando conta de tudo e de todos. Eram muitos os seus agregados. Ora corria para acudir um, ora para socorrer outro. Sem perder a poesia ou a maestria, como se ela fosse uma mangueira frondosa, ofertando frutos e sombras para os que tinham fome e os que tinham calor. 

         Arvorejada, suculenta, preciosa em tempos de calor, também era especial nos dias de chuva, pois a quentura de seus braços era felpuda como um cobertor de 300 fios de algodão.

Nunca faltava um rasgar sorridente em seu rosto, anguloso, leitoso, alvo como as bonecas dos filmes de terror. Tanta alvura fazia desconfiar das origens que dizia ter, filha de cigana com um sarará. Provavelmente daí viesse o negrume de seus cabelos, soltos, pesados, ondulando sempre como uma crina nunca cortada.

O caso era que Teresinha estava cansada. Cansada de ser luz, de ser sombra. Tentou, pouco a pouco, ir se desfazendo da rotina dos seus dias, mas ela parecia toda uma primeira pele, difícil de descarnar. Já não sabia ser cobra.

A pele então foi pesando, como se em cada um dos folículos tivessem cerzido um grão de chumbo.  Quem era o costureiro maldito? Teresinha não sabia. Procurava nas mãos dos outros, as marcas de agulhas. Procurava, como quem vistoria a casa depois de um assalto, por baixo das camas, nos armários, por trás das portas, em qualquer lugar, os vestígios desse artesanato medonho.

Teresinha ficou triste, muito triste, tão triste, como ela apenas sabia saber sem que ninguém soubesse.

Quando da última promoção, com os parabéns dos colegas do seu departamento, ouviu, de longe, - Teresinha é phoda, Teresinha deixou de sorrir. E resolveu phoder.

Teresinha foi numa casa de depilação, esfoliou o couro todo e com a ajuda da esteticista, tentou pinçar algumas gramas de chumbo. Saiu de lá se sentindo mais leve, apenas algumas gramas mais leve. Sabia que teria que phoder. Quando estava indo para casa, desejosa de ser despida, ouviu seu telefone tocar. Agora não, pensou, sentindo a urgência toda. Mas era seu tio. Teresinha o atendeu. Já tinha alguns dias que não o fazia. O tio, ao ser atendido, cantou, como sempre o ouvia cantar desde pequena, o Teresinha de Jesus. Na pressa de atende-lo e segurar as compras de sua nova lingerie púrpura, Teresinha foi ao chão. Caiu pesada, apesar de se sentir mais leve. A voz do tio se quebrou, espatifada igual ao aparelho.

Ao tentar se levantar, Teresinha recebeu ajuda. Era um antigo conhecido, um cavalheiro de tempos de outrora, que lhe ofereceu a mão. Teresinha aceitou. Das mãos, vieram poesias, segredos trocados, promessas, cochichos ao longe dos corpos. Músicas e vinhos, pensou Teresinha, pronta para phoder.

Teresinha assim aceitou um encontro. Seria perto da casa de um ou de outro. Não era o terceiro a quem Teresinha dava a mão, mas era o primeiro, há muito tempo, que as mãos pareciam macias e sabedoras do que fazer.

E assim, foi...  Pronta a dar seu coração. A dar seus seios.  A dar sua boca. A dar seus braços. A dar seus pés. Suas unhas. Seu suor. Suas orelhas. Seu cheiro. Sua bunda. Suas costas. Sua nuca. Sua boceta. Seu gozo.

Mas na hora da cama, o moço de mãos macias, não soube o que fazer com Teresinha. As mesmas mãos que a levantaram do chão, pareciam concreto ao pegar em seu corpo. Teresinha passou a noite. E de noite, ainda na cama, ficou lembrando da cantiga da Teresinha. Não daquela que tinha um pai e um irmão. Tampouco da cantada por Chico, ainda que essa a inspirasse.

Lembrou da música que ouvia quando era bailarina. Da Teresa que não era inha. Assim, levantou-se da cama, dizendo não quando o cavalheiro pediu que pernoitasse por lá, foi ao banheiro, banhou-se. Recolou a púrpura de sua roupa íntima e pensou sobre as costuras em seu corpo. Viu que sua pele era peso. Chumbo. E não desejou mais trocá-la.

Ah Teresinha, como você saiu bela de lá. Toda armadura. Sorriso frouxo. Enorme.

Enquanto Teresinha ia para casa, foi engolindo o mundo. Entre o que engoliu, sem medo, feliz pela pele que costurara, saiu phodendo com todos os cavalheiros e, quem sabe, com algumas damas, que esbarrara no seu caminho para casa. Chegou farta, comida, toda enterezada. Havia deixado o inha no banheiro do cavalheiro.





sexta-feira, 4 de julho de 2014

Tal como um orgasmo... (Jogos da Copa²)


O cuidado que tive com ela foi o mesmo de digitar aqui, medrosa que sou, de bagunçar a ortografia toda.

Mas esse conto não é sobre mim, quiça sobre ela, talvez, quem sabe sobre uma sensação, de alegria pura, júbilo, como se finalmente as cartas do baralho se alinhassem.

Nem foi o caso. Abri mão de muito para relatar o mínimo, tão máximo, apenas 2 X 1.

Para explicar a ela, macho que sou, falei das jogadas do futebol, falei do meio campo, do zagueiro, do que seria a trave... Ela apenas me olhou, como se estrangeira eu fosse. Mal tinha me espacializado, decalcado minhas terras todas, me vendo na situação de dizer para ela, logo para ela, o que era o gol.

Na ausência de palavras, disse – goze, como quem goza o bailarino. Ele ganha milhões; e ela, como quem indaga, por trás de todos os óculos, e você?

Sei lá o que ganho eu, não estou para jogo nenhum, apenas apostei minha vida. Apostei que poderia, apostei que o rinchadeiro todo não veria acrescido das misérias do sertão. Apostei que, naquele jogo, teria a eternidade pega entre os pés. E eu era apenas transeunte.

Mas era danada. E na danação, expliquei para ela. O jogo, imbecilizado, de pernas a correr atrás da bola, nada mais é do que o jogo da vida, daquele entremeado, em que você corre o corpo dela inteiro, horas depois, toda suada, e diz – bola na trave.

E a coisa lhe consome, lhe toma toda, como se 75 minutos fosse pouco e apenas lhe restasse a prorrogação.

De quem foi o gol? Que trave lhe abateu, poderíamos conversar se o jogo já fosse ganho, se eu soubesse em que lugar estavam as vírgulas, mas elas sempre foram um problema... uma vez corrido o texto, no mínimo três pontinhos... como se o aberto de tudo fosse o fechamento perfeito.

Nem foi o caso. A história da bola rolou horrores. Do que me é permitido falar, sorrio das associações com o acasalamento, riu como quem ri do riacho seco, daqueles de terra crestada, marcada pela presença e pela ausência. De quem faz da vida, uma copa, como se num momento apenas tivesse a verve e a verdade.

Mas choro junto, choro se pudesse fertilizar as terras todas. Se me fosse permitido, sertão meu, jamais veria a falta d água, o verde nos alcançaria e o gozo seu, e o meu, fertilizaria o mundo inteiro. E assim, toda copa, seria como nós duas na cama, eu e você, gozando juntas.




quinta-feira, 26 de junho de 2014

Jogos da Copa



Eles tinham vindo de longe. De muitas serras além. Não que precisassem escalar nenhuma altura ou trouxessem na sua mala cordas, pinos ou alavancas. Era um grupo festivo, trazia apenas as gargantas secas e a vontade de engolir o mundo. Se reuniam, religiosamente, no altar de Baco, como a celebrar a vida, se juntando a outros, que ali já estavam. A cidade tinha sido escolhida a esmo, uns pensavam, outros, munidos de seus aparelhos rastreadores, não, sabiam que naquela pequena cidade, encravada por entre montes, em que o vento tinha que pedir passagem, e chegar de mansinho quando o sol se punha, a oferta e a procura pareciam se dar as mãos.

Eram ainda jovens, quando ali botaram morada, fincavam chão, levantaram teto e construíram famílias. As famílias que eles formaram sabiam da devoção sagrada de cada um deles e, por isso, não eram empecilhos para os ritos, cotidianamente, prestados entre eles. E se empecilhos fossem, eram deixados de lado. Era preciso celebrar a vida.

O curioso de todos eles é que a celebração acabou por tornar-se a própria vida. Um deles, em depoimento, ansioso, sempre dizia - tenho que ir bater o ponto, mas chego já. O templo escolhido era na recém inaugurada praça. Lá, improvisaram, na alegria que era costumeira, banheiros para se aliviarem, sombras para os dias mais quentes, um pendura para os dias sem espécie, afinal, tinham vindo de longe e o importante mesmo eram estarem juntos. 

   Era um bando ruidoso, cheio de gargalhadas, cuja (anti)monotonia era engolfada com a mesma voracidade daquele espetinho duro que acompanhava os goles todos. Era um belo grupo, grande em sua formação e grande em sua hospitalidade. Os que viam de longe, não compreendiam como havia tanto a se dizer e a compartilhar. Mal sabiam os transeuntes que eles trocaram de pele uns com os outros. Que eram uma tribo, um coletivo, sem papéis pré-determinados e sem as regras hierárquicas. Se viam todos iguais, e assim como riam um do outro, numa alegre comemoração, aprenderam também a rir de si mesmos, compartilhando as piadas intimas.  

Assim, foram-se os anos. Foram-se décadas. Os filhos cresceram, algumas das companheiras foram embora, uns enviuvaram. Outros ficaram órfãos. Muitos perderam seus empregos. Mas a festa continuava, era isso que lhes permitiam se sentirem vivos. As conversas e as rinhas só não caducavam, porque eles sempre lembravam-se de esquecer e assim, reatualizam as histórias todas. Tinham sempre um repertório completo delas, como se fossem autores de literatura feminina, o mote era o mesmo, apenas cruzavam as personagens, misturando situações, etnias, valentias e outros retalhos.

O templo estava sempre aberto, o coração era grande, sempre cabia mais um - era o lema. Alguns permaneciam um tempo, como a desejar aprender a rir também, numa risada conjunta, espantando os fantasmas, espanando a pasmaceira, como se ali, através das risadas e da melodia dos goles, existisse uma heroína desativada, sem o perigo das agulhas infectadas. Alguns iam embora, se sentindo fartos de celebrar a vida. Os outros transformavam a ida em fuga, na mesma cadência de uma piada – só os fortes e os crentes permanecem, era o olé da tribo.

Mas eles também falavam de suas famílias, daquelas que permaneciam em casa, à espera do fim dos ritos. Era famosa a história, nunca esquecida, quando um deles, narrava para todos, que já tinham ouvido e para aqueles que estavam ali pela primeira vez, a história de sua filha – dia desses, minha bichinha, foi num centro atrás de espíritos pedindo ajuda para eu deixar o templo. Ela foi várias vezes, até que os espíritos disseram, como se tivessem ouvido o recado de mim, minha bichinha, tem jeito não, desista – no que ele comemorava, pedindo mais um vinho, como se só assim, pudesse engolir a própria piada.

Entre eles, tinha um que era atleta. E sempre que entrava em regozijo partia para casa numa carreira desabalada. Parecia que as rezas todas eram o combustível necessário para tamanha façanha. Um outro, gostava de jogos. Levava baralho, tabuleiro, dominó... até que as telas saíram das casas e ocuparam outros ambientes. No templo, tinha uma grande, plana, com os canais especiais, que passava de tudo, luta, futebol, basquete, tênis, só não havia espaço para as novelas. As novelas, diziam eles, já bastam as nossas, enquanto continuavam celebrando.

Num dos encontros casuais, ocorreu algo inusitado. Apareceu no meio deles um rapaz garboso, talvez uma década e meia mais jovem, todo alinhado, sorriso perfeito, gestos teatrais, corpo de bailarino, pedindo para se juntar com eles na mesa central. Alguém puxou uma cadeira, fique à vontade. Ele não disse muito quem era nem de onde teria vindo. Mas também nem foi necessário. Logo foi incorporado pela onda de alegria. É verdade, que alguns ficaram ensimesmados, apenas consigo mesmo, se posso usar da redundância para melhor visibilizar a entrada de tal elegante intruso. O sorriso perfeito de dentes alvos, fez alguns lembrarem do riso de agora já destorcido. O corpo, rijo, também trouxe lembranças para os dias das carreiras dadas nos jogos de pelada. O cabelo, solto e brilhante, incomodou aqueles já acostumados com os bonés da vida. Mas nem por isso, ele foi rejeitado. Não quando propôs, quase em seguida, esse jogo, quem vai ganhar? Alguém topa uma aposta?

Parecia que naquela mesa tinha um maestro a deixar rolar os ritmos das batucadas. Foi cerveja, cachaça, vodka, riso, espetinho, cigarro, recordando a todos das antigas reuniões. O intruso, sacou lápis e um caderno do bolso de sua calça e começou a anotar os bolões. E assim, o rito se atualizou numa outra velocidade.

A harmonia foi tão sincronizada que já brindavam pelos jogos que iriam ocorrer no campeonato mundial de futebol. Parecia que o templo precisaria alargar seus limites. Até que veio o primeiro dos jogos. Brasil x Croácia. Alguns perderam, outros ganharam tostões. Tudo acompanhado e marcado por ele, que todos já chamavam de Bookmaker. No segundo dos jogos, todos já estavam presentes. Aliás, não todos. Um deles tinha viajado, como as viagens de antigamente, vestido no paletó de madeira. Brindaram pelo companheiro que se foi, quase conseguiram fazer um minuto de silêncio quando a notícia chegara, mas o jogo deu início e logo a torcida habitou os últimos segundos.

Sempre depois dos ritos, poucos conseguiam lembrar da linearidade dos acontecimentos. Era o mote de outra reunião. Entre o esquecimento de um e o flash de outros, conseguiam montar um surrealista mosaico dos dias anteriores. Mas a lembrança mais arraigada era sempre recoberta tão logo pesava sobre a mesa.

Bookmaker, então, propôs, sorrindo do jeito deles, brindando da mesma forma, posando para as fotos, que futuramente seriam compartilhadas na rede, uma nova aposta, como se a natureza, vida e morte, se naturalizasse assim, entre perdas e ganhos - aposto que no próximo jogo João pega o bonde e viajará também. O jogo então virou outro. E para cada jogo, a aposta era sobre a presença ou a ausência de um. Que coisa mórbida, um ainda arriscou, quando outro disse, deixa de ser besta, sabe jogar não?

O Brasil teria ainda seis partidas pela frente. Afinal, era a Copa do Mundo. E seis foram anotados, como se cada um dos nomes dispostos no alinhamento daquele caderno obedecessem a mais estranha lógica daquela vida em tribo. Ocupados que estavam em tal jogo, realinharam seus próprios times. Como se o time fosse um 'time', diziam, rindo dos ingleses. A única certeza era que todo jogo se encerra. Bookmaker, não era de dar palpites, mas entre um drible e outro, resolveu abrir o jogo, quando disse, eita gota, não sou a camisa dez, mas nunca perdi uma partida, sou o artilheiro de todos os tempos, já me chamaram até, num livro qualquer, de indesejada das gentes.

Se entre eles tivesse um bom entendedor ou quiçá algum leitor, talvez o jogo virasse. Talvez...