A coisa toda aconteceu num dia
qualquer, daqueles imprevistos, quando puderam, finalmente, se encontrar. Eram
amigas de infância, ainda que o encontro tivesse se dado em tempos enrugados. A
história delas, sempre entre elas, indiciava o alhures, pois suas juras ainda
eram cruzando os dedinhos, pinicados e trocados em sangue, antes dos tempos e
amores sombrios. Não eram da mesma turma da escola, tampouco tinha biótipos parecidos,
uma era esbelta como a palmeira mais alta, a outra, atlética, era sempre quem
pedalava, levando no bagageiro a terceira delas, que parecia uma oliva, toda
uniforme em pele, feita como bibelô, pela mão mais generosa de Deus.
Joana nunca soubera bem como tinha
entrado naquela turma que era um par. Lembrava, vagamente, apenas, que nunca
antes tivera com quem partilhar os mais sombrios e alegres de seus dias. Entrou
em trio, como que desconfiada, emudecida, afinal suas palavras eram sempre dela
mesma, ressoando ora na mente, ora nos rabiscos que cuidava em queimar sempre
que eles se corporificavam em papel. Não tinha nada no bolso, a não ser aquele
isqueiro roubado de um fumante qualquer.
Maria não, Maria reinava, ora no
céu, ora na terra. Era a mais vivida de todas, dizia sempre talvez, mais ou
menos, depende, é relativo, como se a mágica dessa música tornassem todas
invencíveis. Era em torno dela que convergiam todas. Não que fossem muitas, lembre-se
que eram apenas três, mas todas se sentiam uma manada, governadas que eram por
Maria. Maria, tampouco, era uma déspota, pelo contrário, parecia a grande mãe, já
tinha feito sexo, sabia dizer os detalhes todos, das horas escorregadias,
molhadas, agoniadas, ofegantes. Nunca falava o nome do homem ou do rapazinho,
agora nem interessava tanto, não quando se entra nos enta. Homem para elas era
qualquer um que tivesse mais primaveras. Não muito mais, apenas mais.
Isabela costumava ser chamada de
Ira, entre elas, mas não que fosse raivosa ou qualquer coisa que o valha. Era a
mais lida e vez ou outra era pega com a Iracema de Alencar, como se
fosse a mais garotinha de todas, romântica, olivada, com olhos amendoados e
cabelos de graúna. O sorriso, todo contente, parecia nunca doer na vida, como
se a vida fosse doce, doce igual ao brigadeiro que furtava da cozinha da mãe,
dizendo: prove esse batom, partilhando dos lábios a doçura da vida.
Mas isso fora no outrora de tudo. Quando,
entre elas, uma vinda do norte, outra do sul, e aquela sem nunca ter
desalinhado a geografia de sua vida, feito anfitriã, tempos depois, viu numa
rede social qualquer, a coincidência dos espaços, disse, vamos? Por que não?
Não acredito que tenha sido
confortável para nenhuma delas. O convite mesmo, feito pela vontade de poder
falar, daquela que nunca saiu de lá, ainda que na distância dos tempos,
coincidiu com as tardes apaziguadas de quem volta à terra pisada e se entedia
no próprio ritual da memória.
Elas nem se procuravam mais, raras eram
as ligações e as cartas tão delongadas de antes. Mas estavam em falta com as
promessas feitas. E, assim, receosas de quebrarem não as juras, mas o linear de suas existências, crentes que eram devedoras do passado, se marcaram naquele
bar. Não saberia precisar a cronologia desse reencontro. Entre elas, tampouco.
Sei que uma delas ficou muito
nervosa. Usou toda a sua maquilagem francesa, fez os contornos todos e postou
na sua face um brilho todo especial, se sentindo novamente bela, como nunca
mais o sentira. Saiu segura, não como uma trova simples, mas como se fosse outra,
sofisticada, toda simulada no eau de
parfum. Esquecera, inclusive dos dias de poucas falas, das tardes que se
sentira querida se sentindo útil, enquanto pedalava horrores.
A outra, moderna, sexy, foi toda
aberta, bacana como só ela se sentia, toda esperta, craque de si mesma. Levou até
seu portfolio, para mostrar como ela se tornara uma mulher grande, como era
outra.
A que convidara todas, dizia apenas,
lembram-se daquela cachaça? Lembram-se dos dias cinza? E enquanto relembrava,
tomava umas e outras. Elas, entre elas,
queriam lembrar o tempo dos dias comuns e velozmente entraram no ritmo daquela que
nunca saíra de lá.
Foi um desmantelo só. A maquiagem
borrara. O portfolio virou descanso de copo e se estabeleceu outra dinâmica. Eram,
entre elas, três mulheres. E isso, você sabe, se torna um chama. Apareceram
marinheiros, advogados e drogados, entre outros, querendo amar e desamar. Uma delas,
num meneio, quase elegante, se não fosse embriagado, dispensava todos. Xô, cai
fora, sai daqui.
E, entre elas, sem nem saberem onde
estavam, disseram, umas as outras, dos amores e desamores, das mulheres que
furtivamente beijaram, dos filhos tidos sem serem queridos, do conforto dos
dias perdidos pelo pior dos parceiros, da vontade de serem outras, da tristeza
das salas abertas, da vontade de darem sem se dar, do dia em que uma delas disse
adeus a todos, dizendo vou ver minhas amigas, como se o retorno delas, fosse o
de si mesmo, falando num ritmo tão rápido, para elas, entre elas, a tornar efêmero
o mais longo dos tempos, quando, ao se despedir dos que deixara para trás, das
amarras dos seus dias, dizendo adeus a tudo que era estéril, tivesse seviciado o destino.
E assim, entre elas, uma delas, entre
um gole e outro, sumiu. Não se sabe onde ela está, até hoje, se viva ou morta, de morte morrida ou morte matada. As
outras dela, diziam apenas, continuando, ela está bem, como se partilhassem os
batons de outrora e o passado já não cheirasse a carne putrefata.
Eu apenas ouvia como boa escrivã que
era e, se pudesse delegar, arquivava o caso, porque entendi que aquilo só
poderia ser resolvido entre elas.