sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Quando ela...


Quando ela ligou... Anunciou de pronto, sem muita medida, que seu corpo estava ressequido, vazio de paixão, vencida de acontecimentos. Que havia experimentado a morte. Que já não pensava mais em nós duas, juntas. Que lamentava ter que se despedir. Que não dava conta da intensidade. Que precisava correr mundo. Que precisava desligar. E que aquilo era um adeus. Não me coube interjeições, pega que fui pelo assombro de sua fala corrida. Tentei retornar a ligação, nada, estava totalmente desligada. O tempo parecia sorrir para mim, como a anunciar que ele era o senhor do absoluto, que o que ele dá, ele toma, todo cruzeta, ao acenar a duplicidade daquela ligação, ela toda veloz em desaguar tudo, eu congelada num instante qualquer, suspendida. Não sei o contar das horas, não sei como falar do primeiro de tudo, não soube, nem ao menos, mensurar os dias passados a duas. Pensei em lhe falar do tempo vivido, dos meses, dias e anos dos aconchegos de edredom, mas me sumiu a contagem dos dias alegres. Fugiu ligeiro como foge aquilo que não é de todo nosso.

Quando ela apareceu... Veio recomendada por amigos em comum, não era o meu tipo, não gostava das gatas, daquelas descoladas, de frases insinuadas. E assim, me colocava à distância, desconfiada da gula que ela anunciava possuir.  E foi por fome que acabamos ficando juntas. Ela sempre vinha, toda embriagada de vinhos, farta da rua, comer na minha cozinha. E eu a recebia, polindo e roçando o seu nariz com os cheiros que preparava especialmente para ela, apenas para ela. Assim, toda alta noite, temperada, ela me dizia tua, sou toda tua. E tua era o nome que ela ronronava ao meu ouvido, enquanto acomodava as mãos em mim. Sabia que a sua razão não era o tom sobre o tom da minha. Tampouco eram opostas. Às vezes, aquele que sorriu para mim, tão desdenhoso, tão senhorinho, ocupado nos seus salmos, amarrava sua mão do amor, toda dele, e longe do todo, à deriva, permitia os pequenos furtos de nós duas. Não precisava mais nada, pensava até, Deus, tá tudo certo. Leve o resto, isso é tudo, tudo tão certo, não sem que a culpa me habitasse.

Quando ela se foi... Lamentei não ter dado o último beijo, não tê-la afagado mais um tanto, não ter dito fique, por favor, fique mais um pouco, fique mais um instante, fique um bocado, fique um tanto, fique sempre... Lamentei não poder ser ouvida, não poder retornar a ligação, não me fazer compreendida, não ter feito o último jantar. Lamentei até o sono interrompido, quando ela...  Recobrada da comilança, ia para o mundo, devorar outras histórias, toda fome de viver.