sábado, 21 de dezembro de 2013

Entre elas


A coisa toda aconteceu num dia qualquer, daqueles imprevistos, quando puderam, finalmente, se encontrar. Eram amigas de infância, ainda que o encontro tivesse se dado em tempos enrugados. A história delas, sempre entre elas, indiciava o alhures, pois suas juras ainda eram cruzando os dedinhos, pinicados e trocados em sangue, antes dos tempos e amores sombrios. Não eram da mesma turma da escola, tampouco tinha biótipos parecidos, uma era esbelta como a palmeira mais alta, a outra, atlética, era sempre quem pedalava, levando no bagageiro a terceira delas, que parecia uma oliva, toda uniforme em pele, feita como bibelô, pela mão mais generosa de Deus.

Joana nunca soubera bem como tinha entrado naquela turma que era um par. Lembrava, vagamente, apenas, que nunca antes tivera com quem partilhar os mais sombrios e alegres de seus dias. Entrou em trio, como que desconfiada, emudecida, afinal suas palavras eram sempre dela mesma, ressoando ora na mente, ora nos rabiscos que cuidava em queimar sempre que eles se corporificavam em papel. Não tinha nada no bolso, a não ser aquele isqueiro roubado de um fumante qualquer.

Maria não, Maria reinava, ora no céu, ora na terra. Era a mais vivida de todas, dizia sempre talvez, mais ou menos, depende, é relativo, como se a mágica dessa música tornassem todas invencíveis. Era em torno dela que convergiam todas. Não que fossem muitas, lembre-se que eram apenas três, mas todas se sentiam uma manada, governadas que eram por Maria. Maria, tampouco, era uma déspota, pelo contrário, parecia a grande mãe, já tinha feito sexo, sabia dizer os detalhes todos, das horas escorregadias, molhadas, agoniadas, ofegantes. Nunca falava o nome do homem ou do rapazinho, agora nem interessava tanto, não quando se entra nos enta. Homem para elas era qualquer um que tivesse mais primaveras. Não muito mais, apenas mais.

Isabela costumava ser chamada de Ira, entre elas, mas não que fosse raivosa ou qualquer coisa que o valha. Era a mais lida e vez ou outra era pega com a Iracema de Alencar, como se fosse a mais garotinha de todas, romântica, olivada, com olhos amendoados e cabelos de graúna. O sorriso, todo contente, parecia nunca doer na vida, como se a vida fosse doce, doce igual ao brigadeiro que furtava da cozinha da mãe, dizendo: prove esse batom, partilhando dos lábios a doçura da vida.

Mas isso fora no outrora de tudo. Quando, entre elas, uma vinda do norte, outra do sul, e aquela sem nunca ter desalinhado a geografia de sua vida, feito anfitriã, tempos depois, viu numa rede social qualquer, a coincidência dos espaços, disse, vamos? Por que não?

Não acredito que tenha sido confortável para nenhuma delas. O convite mesmo, feito pela vontade de poder falar, daquela que nunca saiu de lá, ainda que na distância dos tempos, coincidiu com as tardes apaziguadas de quem volta à terra pisada e se entedia no próprio ritual da memória.

Elas nem se procuravam mais, raras eram as ligações e as cartas tão delongadas de antes. Mas estavam em falta com as promessas feitas. E, assim, receosas de quebrarem não as juras, mas o linear de suas existências, crentes que eram devedoras do passado, se marcaram naquele bar. Não saberia precisar a cronologia desse reencontro. Entre elas, tampouco.

Sei que uma delas ficou muito nervosa. Usou toda a sua maquilagem francesa, fez os contornos todos e postou na sua face um brilho todo especial, se sentindo novamente bela, como nunca mais o sentira. Saiu segura, não como uma trova simples, mas como se fosse outra, sofisticada, toda simulada no eau de parfum. Esquecera, inclusive dos dias de poucas falas, das tardes que se sentira querida se sentindo útil, enquanto pedalava horrores.

A outra, moderna, sexy, foi toda aberta, bacana como só ela se sentia, toda esperta, craque de si mesma. Levou até seu portfolio, para mostrar como ela se tornara uma mulher grande, como era outra.

A que convidara todas, dizia apenas, lembram-se daquela cachaça? Lembram-se dos dias cinza? E enquanto relembrava, tomava umas e outras.  Elas, entre elas, queriam lembrar o tempo dos dias comuns e velozmente entraram no ritmo daquela que nunca saíra de lá.

Foi um desmantelo só. A maquiagem borrara. O portfolio virou descanso de copo e se estabeleceu outra dinâmica. Eram, entre elas, três mulheres. E isso, você sabe, se torna um chama. Apareceram marinheiros, advogados e drogados, entre outros, querendo amar e desamar. Uma delas, num meneio, quase elegante, se não fosse embriagado, dispensava todos. Xô, cai fora, sai daqui.

E, entre elas, sem nem saberem onde estavam, disseram, umas as outras, dos amores e desamores, das mulheres que furtivamente beijaram, dos filhos tidos sem serem queridos, do conforto dos dias perdidos pelo pior dos parceiros, da vontade de serem outras, da tristeza das salas abertas, da vontade de darem sem se dar, do dia em que uma delas disse adeus a todos, dizendo vou ver minhas amigas, como se o retorno delas, fosse o de si mesmo, falando num ritmo tão rápido, para elas, entre elas, a tornar efêmero o mais longo dos tempos, quando, ao se despedir dos que deixara para trás, das amarras dos seus dias, dizendo adeus a tudo que era estéril, tivesse seviciado o destino.

E assim, entre elas, uma delas, entre um gole e outro, sumiu. Não se sabe onde ela está, até hoje, se viva ou morta, de morte morrida ou morte matada. As outras dela, diziam apenas, continuando, ela está bem, como se partilhassem os batons de outrora e o passado já não cheirasse a carne putrefata.

Eu apenas ouvia como boa escrivã que era e, se pudesse delegar, arquivava o caso, porque entendi que aquilo só poderia ser resolvido entre elas.



terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Zumbis na estrada


Já tinha algum tempo que estavam juntos, rodando as estradas. Não se sabe precisar ao certo que tempo era esse. Os relógios e os calendários já não domesticavam nada. Tudo que era doméstico havia se tornado carcomido, igual aos outros. Um dia para um, poderia ser vivido como uma década para o companheiro do lado ou de trás. Eles se encontraram na estrada. Revezavam até a combinatória dos assentos, na tentativa de tornar o hoje diferente do ontem.

Quando os outros chegaram iguais a mais inaudita das hordas, explodiu o todo do tempo e do espaço com uma força cataclísmica, jamais vista. A fome dos outros era tanta e de tamanha voracidade que famílias, grupos, associações se canibalizaram e o amanhã parecia a promessa distante dos mais crentes, imersos que estavam na distopia do vivido, do vindouro.

Seguiam em comboio, carros em filas indianas, muitos de origem francesa, japonesa, italiana, brasileira, juntos em qualquer automóvel que rodasse pelas estradas. Não importavam as nacionalidades. Não existiam mais nações. Eram eles e os outros. E eles eram tão diferentes entre si mesmos, que a vivência da outridade virou experiência cotidiana, na vontade de driblar a solidão e de reafirmar os laços humanos de solidariedade em meio à praga. Os carros que iam falhando pela defasagem de suas peças mecânicas, foram sendo empurrados para o acostamento. Era importante não obstruir as estradas. Era importante não deixar ninguém para trás. E, assim, eles iam se arrochando, se redistribuindo, até o encontro com mais carros e desgarrados  pela estrada, que também eram convidados a se juntarem ao grupo.

         Alguns permaneceram no comboio, mas desistiram da logística ritualisticamente vivida no correr do cotidiano e no interior desse convívio e assim pegaram as transversais das estradas, em busca de novos territórios, se foi por amor ou desamor ou por motivos de força maior, não se sabe. 

       O gerenciamento das lideranças, numa tentativa de salvaguardar antigos hábitos, era cíclico, e encaminhado por meio de consenso, quase como uma assembleia de professores, votada em meio ao mato, que era adentrado por eles em busca de segurança, ainda que parcamente iluminado. Avistavam-se, em meio à tanta escuridão, apenas pela luz das estrelas e da lua. Não era do desejo deles alertar os outros ou grupos (d)eles que seguiam saqueando e destruindo os viventes no desejo, também capitalístico e-ou canibalístico, de sobrevivência.

Quando os outros chegaram, eles perderam quase tudo. Perderam suas famílias, casamentos foram deglutidos, filhos pereceram alquebrando os laços mais sacros, casas foram abandonadas... Novos arranjos em meio ao caos foram construídos, afinal era preciso sobreviver e essa (sobre)vivência não era mais as das contas esquecidas e mal pagas, o inacabado dos trabalhos cotidianos que afogavam e adoeciam a todos, essas pequenezas foram esquecidas, em meio a urgência urgentíssima dessa nova pandemia.

Nesse comboio o ritmo das falas era bem plural, não só pela cadência dos sotaques, pois muitos vieram de terras alheias àquelas estradas, saídos de seus territórios familiares e, num golpe de sorte, quiçá pela presença do divino tão diluído nesses tempos apocalípticos, se encontraram e o desconhecimento de uns foram sendo refeitos na troca dos pneus, na partilha dos víveres, na comunhão do desastre, mas também nos novos afetos, compartilhados no limítrofe dessas existências.

Seria até uma boa história, se o enredo não fosse tão trágico. Os outros eram presenças constantes e também ocupavam as estradas. Estavam, pois, sempre em estado de alerta e de luta, era preciso viver, e viver o si entre eles, corpo coletivo diluído na vontade de que todos eles saíssem ilesos e fortalecidos. Nunca foi preciso fazer tanta força como a necessária para permanecer na estrada e o lema era: ninguém é deixado para trás, ainda que seguissem em velocidades diferentes. No meio do caminho, perderam alguns companheiros de estrada, foram aposentados da vida. Essas perdas eram sentidas, com saudades e com dor, mas também com a esperança de que eles, apesar dos enterrados para trás, estavam vivos e juntos.

O natal se aproximava, diziam alguns que ainda estavam presos a memória do outrora. O natal, nascimento de Jesus, poderia ser a promessa de redenção da humanidade, do fim dos outros, dos carcomidos de morte. O espírito deles, renovado como àquele que morto de sede, mergulha num açude de águas doces,  pintavam com velhos batons, canetas de experiências idas, as latarias daquele comboio. Eram as cores do natal, ainda que sem o piscar das luzes, pois não havia mais energia elétrica, assim como outras realidades passadas.

Um dia, um deles, não se sabe exatamente a origem da ideia tida, falou: vamos ocupar a universidade daquela cidade, pois ele lembrava que quando veio o apocalipse era um feriado qualquer e os portões estavam sempre fechados. S., também achou uma boa ideia, porque seu corpo se ressentia dos dias encolhida nos carros e das noites dormidas ao relento. Precisava de um lugar onde, estrela que era, se sentisse constelada. Aqueles que conheciam o espaço acataram a decisão, discutidas em noites e mais noites no desespero de criarem uma saída.

Não foi uma decisão muito unanime, mas foi voto vencido. Era a ilusão da democracia e do bom senso. Era o desejo voraz de estabelecerem novos territórios que não fossem os das rodagens na estrada.

Um deles, CA., prático no uso das armas, alguns até cochichavam, ele vai à frente, já foi campeão de tiro. A chefa daquele comboio, A., disse de forma enérgica, precisamos nos organizar e, assim, todos, ao redor de mais uma fogueira, redistribuíram tarefas, era preciso viabilizar a esperança, porque a ouvindo, com tanta delicadeza, se sentiram também preenchidos da força advinda da gentileza. M. muito habilidosa na sua arte de gerenciar, em cálculos, os víveres e os kits de sobrevivência, prontamente elaborou um plano de contenção e distribuição igualitária do pouco que eles ainda tinham, sem nunca deixar de lado sua generosidade

E., que já tivera formação clínica, ajudava os mais combalidos, nunca dizendo a real situação dos corpos feridos em meio a tantas rodagens, aliviava as dores do corpo e também da alma. T. não cansava de dizer, vai dar certo, nós vamos conseguir. T. tinha vindo de longe, não fazia parte do comboio principal, mas trouxera suas bochechas rosadas e sua vontade de luta pela sobrevivência e pela força em acreditar num lugar melhor.

N. dizia, tenham calma, como a fazer uma economia da esperança. Era uma mulher prática e sua analítica do caos, já havia salvo o comboio de alguns desastres. G. ainda tinha seu toca fitas, que sempre conseguia reabastecer nas pilhagens pelos postos da estrada, cantando em alto som, sobre as estradas de Santos e os amores que teve, fazendo sorrir aqueles que sabiam da sua fervorosa e também contagiante admiração pelo Rei Roberto, ainda que esses fossem tempos sem rei, sem lei, sem Estado.

W., pródigo como só ele, sempre antes de dormir, desejava paz e saúde para todos. E todos se sentiam apaziguados e mais seguros no advento das noites sombrias. J. era quem guiava pelas estradas, seu carro ia na frente de todos, mostrando os melhores caminhos. Diziam que ela era um ás da velocidade, que quase ninguém conseguia acompanhar seu velocímetro, mas isso foi no passado, ela aprendeu a maneirar o ritmo do seu acelerador, e sempre cuidava para que ninguém ficasse para trás.

M.N., jamais perdia a pose, parecia uma lady, toda bonita, com um humor todo dela, lembrando a todos dos cuidados necessários e dos percalços vindouros. Era uma grande cuidadora e, por isso, indispensável.

L. tinha um riso fácil e um coração generoso, preparava e distribuía a comida, como quem estivesse na sua casa, recebendo os amigos com os amendoins que ela mesma torrava. M.T, já era o mais agitado de todos, tinha pressa, era daqueles que na sua insônia, velava, à noite, pelos companheiros.

E.M. sabia que em outro grupo não sobreviveria, mas também não desejava esse lugar do sossego, visualizado por eles. Sentia-se segura, em paz, no seu próprio movimento, e sabia que um dia deixaria aquele comboio, era mais forte que ela, porque a paz só era possível no nomadismo das estradas. Queria ir com eles, encontrar um lugar de conforto. Contudo, sabia bem no seu íntimo, que seria passageiro, porque sempre fora uma passageira de si mesma, assim como sabia também que sentiria saudades e que seu coração iria partido, mas era preciso seguir a rodagem.

Juntos eles chegaram a tal universidade abandonada. Abriram os portões e precisaram fazer uma limpeza dos outros, que, como demônios, sentiam o cheiro de carne, endoidecidos para deglutir a vida. Não sem muita luta, ocuparam o espaço, acomodaram todos e festejaram no dia de natal, com um Single Barrel e algumas cervejas quentes que tinham guardado para dias mais felizes, a comunhão deles e a promessa de dias melhores, deitados nos bancos, mirando o céu, como a esperar a vinda do salvador. Seus corações, redimidos, em sintonia, cantaram uma bela melodia: estamos vivos, ainda que não totalmente seguros, pois um ano novo já se anunciava e havia muito a ser feito... 


Ps. Feliz natal aos meus amigos, companheiros das estradas e da vida.


domingo, 24 de novembro de 2013

MAIS MÉDICOS!!!!



Costumava dizer, quando pequena, que ela era minha mãe de chocolate, enquanto ela me dizia - Deus me deu uma filha de leite, enviada como um presente todo especial por Nossa Senhora. Não tinha o hábito de chamá-la de senhora, tampouco ela gostava, ainda se sentia leve apesar do peso dos anos. Morávamos numa cidade pequena, cujos gracejos, pela inclemência da quentura, era chamada de Morada do Sol. Nas lides da vida, o leite da minha pele, virou pingado e, assim, me avizinhava mais com aquela que me ensinou a nadar nos açudes aos pés dos lajeiros.
Não erámos apenas nós duas, os agregados, os filhotes e os vizinhos sempre estavam a habitar a sombra que nosso teto ofertava, quente e cheiroso de café. Um dia caiu de virmos para cidade grande, já não era nos açudes que brincávamos na liquidez de tanta água. E o sol, esse ainda companhia das nossas peles, parecia melhor parceiro, diante dessa água sem horizonte. Apegada que era aos meus caminhos já sem vistas, sentia vontades de retorno. Ela não, ela, toda aventureira, pegava as ondas como se fossem as pérolas de uma vida inteira e dizia: um dia, ainda em dezembro, desse mar, chego ao Rio.
Mas foi em Janeiro que ela se apoiou em meus braços quando a levei, caída, ao hospital. De hospital em hospital, íamos sendo transferidas, como uma carga qualquer, sem plástico-bolha, sem o carimbo das entregas preciosas, a ocupar corredores, ouvindo o refrão de uma música maldita, não temos leito, não temos pino, não temos médicos.
Enquanto ela nos meus braços se apoiava, a abraçava como se nosso corpo junto fizesse a mais gostosa das combinações. Meu corpo leite, pingado de café, ela toda chocolate, nos marinando juntas. A multidão, que também estava à deriva, naquela maquinaria tão gélida, sentiu o sol na nossa pele e se aproximava para, talvez, se banhar. Indagaram-me muito, vendo a mistura das cores, quem é ela? Ela, eu dizia, foi um presente divino, enviado para adocicar a vida, minha mãe, e esse foi o último de seus sorrisos que tive o prazer de guardar em mim.  Alguns poucos dos muitos sem jaleco, ocupando a esterilidade daquele corredor, perguntavam se estávamos precisando de algo, quando, na urgência daquele tsunami, respondi, numa voz surda, que num coro interno, reverberou em uníssono na multidão, por favor, (mais) médicos.

Ps. Janeiro se aproxima e um dia irei ao Rio, levá-la comigo, porque ela ainda habita minha pele. Sem mais.


sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Quando ela...


Quando ela ligou... Anunciou de pronto, sem muita medida, que seu corpo estava ressequido, vazio de paixão, vencida de acontecimentos. Que havia experimentado a morte. Que já não pensava mais em nós duas, juntas. Que lamentava ter que se despedir. Que não dava conta da intensidade. Que precisava correr mundo. Que precisava desligar. E que aquilo era um adeus. Não me coube interjeições, pega que fui pelo assombro de sua fala corrida. Tentei retornar a ligação, nada, estava totalmente desligada. O tempo parecia sorrir para mim, como a anunciar que ele era o senhor do absoluto, que o que ele dá, ele toma, todo cruzeta, ao acenar a duplicidade daquela ligação, ela toda veloz em desaguar tudo, eu congelada num instante qualquer, suspendida. Não sei o contar das horas, não sei como falar do primeiro de tudo, não soube, nem ao menos, mensurar os dias passados a duas. Pensei em lhe falar do tempo vivido, dos meses, dias e anos dos aconchegos de edredom, mas me sumiu a contagem dos dias alegres. Fugiu ligeiro como foge aquilo que não é de todo nosso.

Quando ela apareceu... Veio recomendada por amigos em comum, não era o meu tipo, não gostava das gatas, daquelas descoladas, de frases insinuadas. E assim, me colocava à distância, desconfiada da gula que ela anunciava possuir.  E foi por fome que acabamos ficando juntas. Ela sempre vinha, toda embriagada de vinhos, farta da rua, comer na minha cozinha. E eu a recebia, polindo e roçando o seu nariz com os cheiros que preparava especialmente para ela, apenas para ela. Assim, toda alta noite, temperada, ela me dizia tua, sou toda tua. E tua era o nome que ela ronronava ao meu ouvido, enquanto acomodava as mãos em mim. Sabia que a sua razão não era o tom sobre o tom da minha. Tampouco eram opostas. Às vezes, aquele que sorriu para mim, tão desdenhoso, tão senhorinho, ocupado nos seus salmos, amarrava sua mão do amor, toda dele, e longe do todo, à deriva, permitia os pequenos furtos de nós duas. Não precisava mais nada, pensava até, Deus, tá tudo certo. Leve o resto, isso é tudo, tudo tão certo, não sem que a culpa me habitasse.

Quando ela se foi... Lamentei não ter dado o último beijo, não tê-la afagado mais um tanto, não ter dito fique, por favor, fique mais um pouco, fique mais um instante, fique um bocado, fique um tanto, fique sempre... Lamentei não poder ser ouvida, não poder retornar a ligação, não me fazer compreendida, não ter feito o último jantar. Lamentei até o sono interrompido, quando ela...  Recobrada da comilança, ia para o mundo, devorar outras histórias, toda fome de viver.


sábado, 17 de agosto de 2013

Eu sou queer! E muito gata!

Batizaram-me como a Rainha dos Dragões, uma  tal de Daenerys, nome de batismo, nem homem, nem mulher, quaque(er) cousa. Não quis fazer feio, vim de longe, pega no bueiro de uma rua, dessas que todo mundo passa ao longe, como a torcer o nariz,  sou gata, sou bueira, sou do lixo., sou descentrada. Mas tinha o rabo farto. Foi meu rabo que me salvou. Ele era peludo. Diziam até, - ei, você se passa, se passa igual a uma persa.
Eu nem sabia o que(er) era isso. Mas meu rabo me salvou. A mãe da minha mãe que já era minha avó me chamava de Rabuda por mais protestos que eu ouvia por aí. Não sei como lidar com meu rabo. Sei que ele é emaranhado, desses que tem fios em nós. Farto, totalmente farto. Mas nem gosto que me apalpem. Fico irritada, o rabo é meu.
Não sou Aristogata, mas não como ração qualquer. Gosto de me saciar com aquela que diz que é gold, alimento de alta qualidade, como a desafiar o destino que meu Deus me deu.  E eu posso, porque tenho o rabo e os olhos de gata, desses amarelos, como quem já nasceu com a maquiagem perfeita. Soul gata.
Um dia, no boteco, cismando com aquela baratinha que passou, meio de lado, já rebolando, a vi, aquela Preá, gostosa que só ela, feito rata, mascarada, tão carne. E eu salivei como salivava aquele povo, esquálido de poesia, afastado de batata (toda fritada do Mac), pensando: vou comer porque tenho a fúria do fogo, tenho rabo e meu corpo, em movimento, pode ser poesia.
Era o dia das mães e eu programei bem direitinho. Desovei o corpo dela, engoli quase tudo, deixei a moela e um pouco de sangue, esquecendo só o celofane.
Minha mãe chegou, não ficou feliz, não me fez gracejos,  nem me disse nada.
No silêncio dela, pensei, como é difícil ser gata, bem que eu podia ser uma cachorra!!!


Ps. A – S – P- R – E – P- A- R- A- D- A-S- !   S – Ó – A - S - C-A – C – H – O – R-R –A – R –A – A –S

terça-feira, 11 de junho de 2013

Solturas


Era assim, solta no mundo. Era tanta soltura, que não, nunca pensara em se apegar a nada. Costumava olhar de longe, os apegos dos outros. Era na rua, era na escola, era em casa, era consigo, sempre indo. Os pais sabiam, quando não perguntavam, todas as filiações. E distantes, sempre estavam. Era assim, totalmente, tolamente, enraizada.

Por isso nunca estranhara, nunca estranhara a distância, nem o enviesamento que estava. Não estranhara quando deu a primeira vez, sem emoção nenhuma, sem sangue, sem hímen, sem vergonha, sem prazer. Estava tudo certo, como certo eram as contas do mundo.

Detestava as raízes todas e não por acaso tinha a insistência de arrancar as folhas por onde  as encontrava plantadas, tão arvoreadas. Via-se plena, quase sempre absoluta. E um dia ela me viu, me viu, como se olhasse de lado, como se olhasse desconfiada, como se nem acreditasse.

Olhando-me, assim de banda, sem nem acreditar decerto, como um vislumbre, totalmente, tolamente ensimesmada, me puxou pra dançar, naquele buteco e me disse: - você tem um cheiro bom, cheiro de vinho barato.

Eu me senti bacana, fiz os rodeios todos, e baforei mais um tanto, incendiado que estava. E a puxei pra dançar, enfiando os pés por entre as pernas dela, como se pudesse controlar o ritmo das vontades.

As pernas dela eram longas, fortes, daquelas acostumadas aos mil passinhos. Na sua troncura, me segurei e pensei  -  que se danem todos os ritmos, as quero ao meu derredor. Quero uma coroa de pernas para com elas me deitar e ser rei.

E, olha só, ela nem sabia, mas eu já a via visto. Já tinha visto a veia azul dos seus seios, como a mandar pra mim, de tão longe, o recado, aqui se soma a abundância das terras que sabem ser férteis. E, sedento que estava, faminto até, me fiei, como quem é enredado nas histórias das mil e uma noites, pensando apenas, com você, nessa noite de fome, com tanta gula sentida, me farto de fastio.


Ela, sem entender direito, me devolveu e soltando se foi... assombrando meus dias. E, tolamente, fiquei, a senti-la tão absurdamente...


segunda-feira, 25 de março de 2013

Pai, manda chuva


Já são semanas de espera e a chuva não chega. O dia passa arrastado, mexo em tudo e não concluo nada. Revolvo a terra, me atualizo das coisas do governo, olho, todo dia, para o horizonte, mas me ocupo do balanço, esperando o sol cair. E a noite, que antes, bem vinda por causa do entorpecimento, me deixa atormentado. Por que não chove pai? Sei que não errei nas minhas contas. Participei das coisas do mundo, fiz cadastro onde devia, me associei onde orientaram, fiz tudo o que tinha que fazer nesse meu tempo. Mas eu me enganei pai, esse tempo não é o meu. E o seu também não me pertence. Nem ao menos, me reconheço mais, ainda não. Fico pensando que quando a chuva chegar, o mundo então será lavado. E sairemos limpos dessa. Claro que eu nunca serei julgado, aqui não. Eles não vão encontra-la. Não vão nem mesmo procurar. Eles sabem que a sujeira, de perto, respinga. E todos eles respeitam meu nome, minhas botas e minha aliança e já não temos água. Eu e meus companheiros, nesse barco sem água. Só não esperava que depois de tudo, eu me tornasse o outro. Mas eu sei que sou, mesmo com todo o meu estranhamento, sou aquele que antigamente se falava, entre uma cusparada e outra. Mas tudo que fiz, entre o céu e a terra, pode ter certeza, foi por amor. Talvez eu não tenha sabido amar. Mas pai, você tampouco me ensinou. Queria apenas que você se orgulhasse do seu filho. Que visse como eu me tornei grande. As terras, ao nosso derredor, já são todas minhas. Os nossos se foram e não tem mais ninguém que seja do seu tempo. Os vizinhos, a léguas de distância, já não sabem de quem sou filho. Eles também não sabem de mim. E tudo o que eu queria era ser gigante para que assim você pudesse me ver. Agora não adianta mais, estou tomado por escaras. Apenas me escute:
-  Pai, manda chuva. Manda a chuva, eu, eu... manda chuva.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Tudo certo


Eu sempre senti assim no gogó. Vinha descendo, era vida demais pra mim e morria tanta gente. Do grupinho da escola que eu ia de vez em quando, poucos sobraram. Parece piada, véio, esse filme que a gente compra no terceiro. Boyzinho com cara de mau. Pra rir mesmo. Filme de ação é filme de piada pra negada. Veja o filho de Martinho, todo alvejado. Furado feito bolso de malandro. Num trisco, passaram as madames no carro, quase relando, e o cabra achava que ia dar tempo. Foi só dar um tiro no pé. Furamos ele todinho. Do pescoço até a coxa. Fui pra casa com medo, porra, o cara era sobrinho daquele tenente, aquele escroto da Rua Major, mas ninguém viu, e madame num para pra nada mesmo. Tudo certo.
Me lembro ainda daquele povo de São Paulo dizendo, vou lá, morar no interior, tranquilo, vida barata, tudo manso. Quem disse isso a quem? Que porra é essa? Tá certo que quando o negócio engrossava, eu saltava fora. Gostava era de puxar um fumo, brechar as negas passar, pegar o celular de um folgado. Mas queimava tudo, não sobrava nada. Não vou dizer que a coisa era fácil nessa época, eu tremia, vai que um filho da puta desse puxava um ferro. Sei não.
 E mais a mais, não sou frouxo não, quem nunca teve medo? Eu só queria fazer a minha, tá ligado? Sei lá porque Helinho invocou com aquela família, eles fugiram pra Bahia. Todo mundo sabe, esse tal de facebuk é do caralho. Falei pra gente ir lá, mas minha nega não deixa, tem ciúmes das moças da praia, puta merda.
Não vou ser gabola também não, porque gabolice é coisa de viado. Não vou dizer que quando pego a pistola acerto mais do que faço zuada. Mas isso era antes. Antes mesmo daquele doutor engomadinho que me diagnosticou, é mano, aprendi isso, sou um cara diagnosticado. Eu lá doido pra ir puxar um fumo e ele analisando meu pé. Disse que tinha transtorno de ansiedade. Que eu não era responsável. Que entendia meus problemas. Que sabia que eu não queria tomar remédio, mas que ia ser bom pra mim. Eu lá sei. Eu só queria ir pra rua, ia ter festa na cidade, Isabela ia tá lá e eu tinha dito que levava o rum, e o cara era macio feito moça mole, tinha até unha feita. Porra. Ele disse, vou te passar uma medicação, você vai conseguir gerenciar sua vida. Volte aqui com 16 dias para avaliar os efeitos.
Me deu uma caixa e disse: não tome com álcool porque pode dar efeitos colaterais. Enfiou um remédio no meu gogó abaixo. Fui pra casa, pequei bere, e fui pro pacode. Puta merda, a cerveja desceu que foi uma beleza. Isabela tava lá, toda gostosa, nego nem olhava pra perto, mas que lugar que não tem malandro?
Malandro que não respeita, só tem chumbo. Foi a primeira vez que acertei. O furo foi tão profissa, que me chamaram pra outro. E eu pensando, no outro dia, que tinha nascido pra isso. Deixei de pegar as bagas dos cara e curtia o respeito. Foi pedido pra todo lado. Chegava nos cantos, tinha moto, tinha carro, tinha um back, e eu só na minha, tranquilão, tomava dois tragos de Volúpia, o Rivotril do doutor, e fazia mira, brincando até, quem tem medo de nada porra.
Em 16 dias, eu fui o rei. Minha perna nem balançar, balançava. Gostei de mim tomando aquilo no gogó e o doutor disse que eu tava me recuperando. Eu era eu. E não tava nem aí. Se tivesse gogó, tava tudo certo. Era meu segredo. O Baga morreu. Meu nome é Gogó. É só discar, tamo na área.