segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Mortes mal anunciadas



Sabia que o tempo do meu corpo não estava mais em sintonia com o tempo dos meus desejos. Meus ossos doíam, fossem para anunciar um dia mais fresco, fosse para abraçar o calorio que já me era companheiro indesejado de tantos anos. Ainda tinha a alegria dos dias, porque aprendera, durante toda a minha vida, a lidar com minhas dores. Ah, e como foi dolorosa a minha vida, ainda que tão feliz. Aquele que eu amei me foi tirado cedo, por uma brincadeira estúpida de armas, crianças e descuidos.  Minha mãe morrera no mês que mais alegria me trazia, quando o São João, anunciava o fervilhar de batuques, de bandeirolas e dos belos requebros que sempre ficava a olhar. Meus passos, nesse som junino, foram compassados com as orações e a despedida daquela que me trouxera ao mundo.
Não era de fato uma figura triste. Se vocês tiverem interesse, podem ver minhas fotos, uma das poucas heranças que deixei, afora os afetos que plantei nos jardins onde vivi. Todas elas eram centralizadas pelo meu sorriso branco e generoso. E sempre fui uma mulher de fé e a fé não é para todos, sei disso, porque acompanhei, durante minhas décadas vividas, o esvaziamento de minha Igreja. Então, posso dizer que fui pega de surpresa, ela me veio de mansinho, com o resultado daquele exame de rotina, mas foi se alocando no meu corpo, com os outros exames que o sucederam, atestando meus desfiguramentos.
Durante um ano inteiro desfilei pelos hospitais. E lá, pude ver uma miséria maior do que a minha. Eram tantas as mortes anunciadas naqueles rostos e corpos carcomidos, que me senti uma eleita. Ainda andava com minhas pernas e elas sempre estavam acompanhadas dos meus queridos, que tanto cuidei quando ainda eram crianças e que agora zelavam por mim. Ah, o amor, só ele para ser o antídoto da dor.
Sabia que essa era uma luta minha e apenas minha. Já tinha superado outras, meu corpo já havia sido cortado e retirado aquilo que dentro de mim, se tornara meu inimigo. Durante esse ano, tomei remédios que diziam aliviar essa dor, que ora entrava em mim como uma facada sem anestesia. Mas esse mesmo remédio que me amortecia, amortecia também minha mente. E ela ficou confusa, habitada dos mais loucos delírios. Ninguém me avisou que não seria possível vencer essa guerra, ainda que muitas batalhas fossem sendo ganhas.
Mas quando meu corpo, já deteriorado, minha mente já anuviada, meu espírito de fé me disse aquilo que nunca esperava saber: estava morrendo. Era chegada a hora de dizer adeus. Assim, rezei, confessei, recebi minha família e fui ao encontro dos meus que já não estavam aqui. Minha jornada terminara.
Hoje, passado anos da minha despedida, vejo, não sei exatamente de onde, os amados que deixei e aqueles que ao nascerem depois de mim, seriam amados igualmente. Sei que eles me sentem, sei que vivo nas suas memórias, mas queria dizer que a morte não é o fim, mas afortunados eles ainda são, por estarem vivos. Só gostaria que meu afeto ultrapassasse as barreiras desse mundo físico em que já vivi para dizer a eles: cuidado com as mortes mal anunciadas, pois assim como aconteceu comigo, pode vir a acontecer com vocês de quem tanto cuidei e por quem fui tão cuidada. A vida, mal gerida, nos prega peças, e quero reencontrá-los sem as cicatrizes todas com que cheguei aqui. Essa é a vida bem anunciada que desejo a vocês, amores meus.