domingo, 28 de outubro de 2012

A eleição


O resultado visto por mim, há anos luz de distância, me trouxe de volta ao meu país de origem. Já não moro nas terras onde nasci, há muito tempo me desloquei, recriando meus espaços, refazendo meu corpo e minha sanidade, mas essa maldita memória me impede de viver totalmente exilada. Sou uma apartada da minha pátria e para isso me apartei também de minha família. Irônico como a segurança me veio de tão longe, me veio quando me apartei daqueles que me eram queridos.

Já tenho minha própria casa, uma nova pátria, um outro rosto, meus ossos estão regenerados, mas não sem o peso, insuportavelmente leve, dos pinos por entre eles. Mas ainda levo na minha bolsa os barbitúricos que me fizeram acordar e dormir como nos tempos de outrora.

Parecia tudo tão fácil, como se a história da minha vida fosse ser inscrita como as das princesas dos contos de fada. Meu casamento, festejado entre a nobreza de nossas famílias e a promessa de dias gloriosos, de vitórias faustosas, sugeridas pelos mais íntimos e por toda a imprensa prometiam que eu seria uma eterna primeira dama. O casamento do século - anunciava a elite política de minha região.

Na primeira vez que ele me bateu e quebrou parte dos meus dentes, chorei a noite inteira, sozinha, escondida do público. Na segunda vez que ele fraturou o meu maxilar, muda, sem poder falar, recorri aos meus pais, procurando novamente a segurança do meu quarto de solteira como se suas cortinas cor de rosa pudessem me proteger dos olhares do mundo. Mas só pude ficar por lá, algumas semanas, porque todo dia me diziam que o dever de uma mulher casada, o dever de uma mulher de político, era estar ao lado dele e, assim, me puseram de volta na mesma mansão que assombrava os meus dias e que apresentava tão bela fachada. Uma grande fachada.

Sorri com um sorriso novo, dinheiro nunca fora problema, sempre poderia ser substituído, e assim retornei ao lado dele, para mais uma campanha. Nem sempre ele fora tão agressivo, passávamos alguns dias, pouco lado a lado, em que meu sorriso continuava firme, como a honrar a aliança que pesava no meu dedo anular. Entre uma explosão e outra, ele me procurava, muitas vezes alterado pelos seus maus hábitos que todos sabiam, mas ninguém comentava, e assim tivemos filhos. Era impossível não tê-los, também era o meu dever.

Os mais próximos, de sua família e da minha, não me deixavam esquecer que a vida era assim mesmo e que era eu uma afortunada, nascera em berço de prata, vivia em cama de ouro. De tanto que ouvia, aquilo se naturalizou no meu íntimo e por décadas vivi como a mulher casada que todos esperavam que fosse, como a primeira dama desse que era o mais carismático dos políticos, famoso pela gentileza e simpatia com que tratava os seus eleitores, cujo sorriso desperta(va) verdadeiras venerações.

Mas eu não era a primeira, vi, não sem desgosto, depois com alívio, o desfile de mulheres, não damas como eu, a perfilarem nas muitas histórias que conseguiam chegar aos meus ouvidos. Felizmente elas não eram damas e, assim, desejava que ele as tratasse com modos mais principescos, pois não esperava para elas, que conseguiam o seu afastamento do meu corpo, o mesmo homem que por anos a fio se apresentava a mim.

Criei seus filhos e rezava todos os dias para que eles conseguissem fugir do lugar que lhes eram depositados, não foi à toa, que o meu mais querido, foi ser poeta e pensei, Deus me deu uma chance. Um de nós pode ser livre.

Envergada que vivia, nunca tive amigas, mas estava sempre rodeada de outras damas. Não que vivêssemos em silêncio, as rodas fervilhavam de papos alegres sobre as novas aquisições. Uma delas apresentava um olhar tão apagado, que me pareceu ser diferente e dela me aproximei. De forma muito vagarosa, tentei introduzir as falhas, mas não pude ir além dessas introduções, a vergonha nos emudecia mutuamente e assim nossa cumplicidade ficou marcada pela ausência da fala e pela loquacidade, disfarçada, de nossos olhos.

Tentei fazer terapia, mas não foi uma experiência das melhores. Já não conseguia a espontaneidade dos meus dias de menina e sempre havia o perigo de que aquilo dito em voz alta, o traísse ou traísse mais a mim, que já não sabia ser outra daquela dama que me foi inventada.

Há alguns anos, eu já não era necessária. Minha inutilidade foi uma das primeiras brechas que pude me apropriar para ir escavando túneis, tal como os presos com suas colheres em armas. Já não era a jovem de sorriso fácil, meus vestidos de primeira dama estavam fora de moda, vista como inapropriada para figurar ao lado dele em seus palanques e em seus programas televisionados.

Assim, não posso dizer que conquistei minha liberdade, pois da mesma forma como ela fora caçada, me fora caçado também o meu lugar histórico de figurar ao lado dele. Minhas emoções, de tão confusas, me fizeram chorar copiosamente. E as mesmas damas com quem trocava tantas frivolidades resolveram ser solidárias, como se as palavras que tive de ouvir me fizessem sentido. Elas não sabiam porque eu chorava, talvez nem eu mesma soubesse, mas era um choro ininterrupto, desses arfantes. Sabia que era um choro de perdas, nada mais.

Hoje quando vejo o resultado dessa eleição, sinto que as perdas são ganhos. E por isso abri aquele champanhe que costumava tomar em ocasiões como essa, como se pudesse reviver, ainda que numa memória catártica, aqueles tempos, mas assim como as bolhas que ressurgiam no meu copo de cristal, descendo como cócegas em minha garganta, esse tinha um sabor diferente, pois parecia pertencer a outra estirpe, principalmente quando elas me chegaram aos olhos e me fizeram perceber que, longe disso tudo, eu também era uma vitoriosa, pois passada a minha sobrevida, nunca me senti tão eleita.

Um brinde, ainda que tardio!!

domingo, 21 de outubro de 2012

A primavera de minhas flores


Já tem uma primavera que ela se foi. E a primavera ocupou de novo os dias do meu mundo. Por onde ando, vejo flores, as flores do meu sertão. Meu campo de visão está como os vestidos de chita que ela usava para me distrair do seu corpo. Ela não sabia, mas eu adorava a forma como a brisa colava o tecido por entre as pernas e os seios, delineando, delicadamente, os seus contornos sólidos.

Na primeira vez que a vi, era uma flor do algodão, como a promessa de um floco de neve em meio ao trinado do calor sertanejo. Ainda era verão, mas sempre era verão. Ela andava como se fosse imune à quentura toda que tinha ao nosso redor e em mim. Ao me ser apresentada, por conhecidos em comum, gelei inteiro por dentro como se a frescura das serras altas tivesse me consumido. Achava que já era imune e tinha adaptado minhas vestes a tempos quentes, quando depois das minhas ex-mulheres, me consumi em fogo, abrasado que estava, ressabiado que vivia, descrente como o maior dos ateus. Mas seu vestido branco, de tão leve, soerguia em direção ao céu, como se ela não precisasse ser colhida, pois o vento, meu aliado, escolheu seu caminho. Nos meus braços, ela se aninhou e despiu minhas armaduras todas. Foram tempos refrescantes estes. Tempos de luz. Iluminado que estava, acreditei que não estaria mais sozinho.

E com minha flor do algodão, passeei por entre meus familiares, amigos e desconhecidos, desejoso que estava de compartilhar tal beleza. Para todos eles, dizia: é a flor da minha vida e com ela quero um jardim, quero uma casa, quero plantar raízes.


Mas o nosso jardim parecia ter uma vontade própria. As terras cultivadas, em meio às intempéries do cotidiano, foram desenhando novas paisagens. Tinha dias, que ainda sentia o frescor do algodão, mas em outros, como as ervas daninhas que nascem espontaneamente em jardins e tempos (in)suspeitos, indiciavam tempestades.


Muitas vezes, enquanto primavera vinha e ia, troquei o solo do jardim, reguei, cultivei outras sementes, curti novas flores, mandacaru, coroa de frade, bromélia, crisântemos, violeta, tudo na tentativa de colorir os nossos dias. De sol a pique, acompanhei com esperança, da varanda de nossa casa, sentado na cadeira de balanço de palha trançada que havia sido do meu pai, cuja vida inteira amara a sua Rosa Amélia das Flores, que brotasse daquele solo uma nova safra, mas sempre antes da abertura dos botões, o tempo murchava.


Murchava a minha flor do algodão. E agora, sozinho, naquela casa tão grande, que sonhei em construir o meu jardim para todas as primaveras, já não havia nada, era um solo seco, nem quente, nem fresco. Apenas uma primavera que se foi.