quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Carta ²



Venho, por meio desta, informar aos colegas, que chegou pelo correio a minha carta de aposentadoria. Não sem tristeza, informo a todos que, mesmo na minha condição de professora, não poderia mais fazer parte dessa Instituição. Não reconheço esse tempo, os diálogos e os quiproquós todos. Mas desconheço mais ainda a mim e aqueles com quem partilhei mais de 30 anos de sala de aula. Como dizem os mais sabidos, sou outsider, estou fora de moda, do tempo, do lugar, estou fora.
Não sou da geração que sabe fazer uso do e-mail, mas as cartas, que coletava na minha caixinha de correio, sempre tiveram uma dimensão mágica no meu cotidiano, era o momento de aguardar palavras queridas, notícias dos meus que estavam longe, promessas de reencontro, enfim, de toda uma escritura permeada pelo mais afetivo. Mas as cartas também não existem mais, não tem mais lugar nesse presente. A minha caixa está enferrujada, talvez ela também tenha decidido se aposentar, meio a contragosto, já que não mais foi coletada ou untada em suas juntas. Talvez, assim como eu, ela tenha se ressentido da última recebida.
No passado, agora diluído pela dor despedida, sempre tinha desejado que esse dia chegasse, principalmente, naqueles momentos em que minhas pernas não acompanhavam mais a ligeireza das minhas vontades. Costumava dizer, em gracejos, que os dias que faltavam estavam sendo marcados, na minha agenda particular, como quem faz a contagem para uma viagem à lua. E, hoje, estou na lua, como a figura de um astronauta na imensidão do seu território. Apenas eu e essa terra que deixei para trás.
Nunca pensei que fosse tão doído. Nunca pensei que tão rapidamente compreenderia que ninguém é insubstituível. Talvez, finalmente, tenha compreendido a marca desse presente, pois esse é o presente da ligeireza, de tempos que corroem tudo, que plastificam os recursos, que desmantelam os desejos, que impedem a passagem tranquila, confortável.
Mas quero dizer a todos vocês, aos antigos e aos novos colegas, com essa minha despedida, já que toda carta precisa ser correspondida, como aprendi nos tempos idos, que estou aqui, disponível, para o que precisarem de mim. É o que eu espero, ainda que saiba, pela minha experimentação simultânea do tempo, que não o será.

Saudações acadêmicas,

Cordélia.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

O letreiro



Todo comecinho e metade do ano, em frente ao portão central, eles colocavam aquela faixa reluzente, com letras grandes. Sempre dava uma paradinha, freando minha bicicleta, e observava o movimento, do vai e vem dos preparativos. Mas nunca podia me demorar muito, sempre tinha um serviço ou outro para fazer, graças a Deus e, naquele dia, tinha que ir terminar de botar o piso na casa de Dona Stela.
Dona Stela era diferente das outras patroas para quem já trabalhei. Na casa dela, mais do que enfeites, havia livros, muitos livros, livros na cozinha, livros na sala, livros no quarto do quintal. Eu nunca entendi como uma pessoa só podia ter tanto livro. Às vezes, eu não me continha e perguntava: a senhora já leu isso tudinho? Ela apenas sorria.
Na hora do almoço, Dona Stela segura um garfo com uma mão e a outra fica ocupada passando folha por folha. Duas vezes por ano, ela me chamava para fazer consertos na sua casa, ora para pintar as paredes, ora para aumentar a casa que já era grande. Era sempre antes da chegada de seus netos.
Mas, entre uma empreitada e outra, eu sempre ia lá aos finais de semana, fazer um servicinho ali, outro acolá. Nem me incomodava quando me chamava aos domingos, porque sempre depois do arrumado, tinha um cafezinho adoçado com histórias de sua juventude. Eram tantas histórias, mas tantas, que eu perguntava, ora Dona Stela, se a senhora gosta tanto de livro, porque não escreve um contando tudo isso. Dona Stela sorria e dizia: Seu Raimundo, algumas pessoas nascem para escrever, outras para ler, porque nascem para amar os livros. Eu nasci e cresci para amar o que outras pessoas produziram com tanto amor.
Sempre me despedia pensativo dessas nossas conversas. Um dia teria coragem de contar a ela o que eu não sabia que poderia amar. Gostava das coisas bonitas, mas nem sempre as entendia. Toda vez que pegava em mãos um pincel mais fino para fazer o recorte e os detalhes das pinturas nas paredes, portas e janelas, ficava imaginando que um dia iria botar meus pensamentos pintados. Eles já existiam na minha cabeça, eram tantas as imagens, que associava às modinhas que criava, mas que o tempo cuidava de apagar. Já não era menino moço e minhas costas já estavam mais do que arqueadas. Tinha as contas de casa para pagar, meus filhos para mandar para escola, minha mulher, que nunca satisfeita, reclamava das minhas adorações e não entendia, por que, de vez em quando, eu tinha que tirar o cheiro de bode nos banhos do mar.
Era fins de janeiro e mais uma vez passei em frente ao portão da escola. O letreiro já tinha sido terminado e parecia que naquele vai e vem já tinha o anúncio de mais uma entrada no ano. Mas não tinha tempo para isso, tinha que ir mais cedo à casa de Dona Stela para fazer a lista de compras do resto do material. Fui encontrá-la no quarto dos fundos, já rodeada de seus amores, sentada naquela mesinha antiga, que não cabia companhia nenhuma. As cadeiras estavam ocupadas de torres de livros, como aquelas torres de baralho, via a hora cair tudo em cima dela. Mostrei minhas medidas, que tinha aprendido na urgência das necessidades, com meus números caprichosamente desenhados. Não sabia fazer as contas que via meu menino, quando voltava da escola, escrevendo em seu caderno de tarefas, mas sabia quantos metros e todas as medidas de cerâmicas para assentar numa sala, parecia quase coisa de magia, eu olhava, é já sabia quantas caixas seriam necessárias comprar.
Dona Stela parecia que não tinha muita pressa. Foi puxando conversa e me mostrando umas fotografias de revista, dizendo: Seu Raimundo, quero dessa aqui, anota aí nas suas medidas, que quero uma cerâmica vitória, fosca e com aderência. Dessa cerâmica eu não conhecia não, mas também era tanta novidade no mercado. Mostrei minha folhinha a ela e disse, Dona Stela, não me ignore não, mas a senhora podia escrever esse nome aí que mostro na casa das ferragens, para saber se tem desse modelo. Não sei por que, mas ela ficou parada me olhando, como se pela primeira vez tivesse me visto ou como se eu despertasse nela o que o letreiro fazia comigo. Ela escreveu na folha e mandou dizer que depois acertava a conta na loja. Eu disse, tá bom Dona Stela.
Terminei o serviço duas semanas depois do previsto. A danada da cerâmica era mais delicada para assentar. Mas Dona Stela ficou satisfeita com o resultado. Quando já estava fazendo a manutenção do prédio de Seu Pedro, recebo uma ligação de Dona Stela dizendo que eu passasse lá, que queria me mostrar umas coisas. Claro, Dona Stela, dou uma passadinha aí, depois da hora do almoço.
Ela estava na mesma mesinha do quarto dos fundos, mas as cadeiras estavam todas desocupadas. Mandou que eu puxasse uma, sentou comigo, e disse: a partir de hoje, tire todo dia, meia hora do seu almoço, que vou lhe mostrar como ter amor aos livros. Eu fiquei nervoso, assustado, me tremi todinho por dentro, não conseguia parar as pernas, nem deixar de remexer meus grisalhos, mas sentei depois de dizer, Que é isso, Dona Stela, a senhora é muito ocupada. Foi quando ela me contou, sabe essa casa, esses livros todos, eu nunca tive nada, nasci num sítio pé de serra, para poder estudar, andava mais de duas léguas para ir e voltar da escola mais próxima, utilizava como caderno papel de embrulhar pão, fui estudar na cidade, de favor na casa de parentes, tão mirrada, mas dava conta de cuidar da casa, das roupas e da comida de uma família de seis. Meu pai dizia, minha filha, volte para sua casa, nós não temos muito, mas temos o bastante, não precisa passar por isso, e eu dizia, preciso papai, porque eu amo as letras. E assim, fui vivendo, me formei no magistério, trabalhei, dando aula manhã, tarde e noite, consegui trazer meus pais para uma vida mais confortável, mas, sobretudo, assumi um compromisso comigo, que ajudaria qualquer pessoa que tivesse sede de conhecimento.
Escutei aquilo e uma paz me levou a sentar na cadeira. Durante dois anos seguidos, a cadeira me ficou cativa, até o dia em que escrevi no meu caderno: Sou um letreiro, a letra é linda e agora ela também me pertence.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A mulher bezerra




Sempre temi que quando chegasse esse dia, acabaria por não sentir nada. Talvez por isso tenha gasto minha vida em excessos, em idiossincrasias, apostado na boemia, na boa companhia e em todas as mulheres que passaram por minha vida. Mas isso não importa mais. Diria até que o espaço não é um dos piores em que já estive, já não sinto frio, quiça fome ou aquela vontade feroz de beber o mundo me alimentando das tempestades.
Aqui é escuro e já me permito parar de pensar nela, ou melhor, parar de pensar no que fazer com ela, já que não posso mais ficar à espreita pelas esquinas e bares, na esperança de vê-la passar. Parar de pensar nela seria como fazer tudo de novo uma segunda, quinta ou décima vez. Se tivesse ainda de posse da minha escrivaninha ou dos meus pergaminhos, escreveria para os meus amigos sobre o que fiz, escreveria como um alerta, como um deslumbre, como um desvario, afinal, sempre achei que terminaria meus dias com todos eles, embalados que ficávamos nos botecos da cidade, cada um no seu batuque específico, na sua bebida preferida e nos lances de nossos carteados.
 Não que eu não tenha me casado. Lourdes era realmente uma mulher de verdade, pena que não pude ser para ela o outro da música. Nunca me faltou o guisado de bode, o feijão de corda, a roupa, caprichosamente, engomada, o sapato sempre engraxado, o caldo de mocotó ou a cabeça de galo do dia seguinte. Pena que nossa semente nunca germinou, ela hoje não estaria sozinha. Mas também não imagino com quem esteja agora. Tínhamos entrado, depois de uma década e meia de casados, num ritmo cadenciado, sem grandes trinados e nossos passos, juntos, eram sempre harmoniosos como uma valsa. Era uma música que um homem precisa ter à mão ao procurar o sossego, quando, ziguezagueando ou não, consegue achar a porta de casa e sentir que lá é o seu castelo, lá era um rei. Era nesse lar, que podia desafogar da minha sede de água.
Sempre associei Lourdes àqueles açudes cuja pior das secas não ofereceria perigos. E por alguns dias, mergulhava naquela água calma, funda, e me refazia das minhas noites felinas, procurando a quentura do seu colo. Meus amigos até me invejavam, eles não tinham uma Lourdes para quem voltar. Que deus a abençoe. Sei que ele vai me ouvir, caso São Pedro me abra suas portas.
Mas homem é bicho danado e nunca neguei minha masculinidade. Quando meus olhos injetados das noites viradas se recuperavam, quando a água não saciava mais minha sede, saia de novo, todo alinhado, com goma no cabelo, ainda luzidio, a cantarolar por baixo dos postes de minha cidade, como quem tivesse a dizer, saiam da frente, o rei vai passar e ele tem sede, sede de cachaça.
Foi numa dessas saídas que a conheci. Tinha vindo da cidade grande, alguns diziam até que vinha de terras estrangeiras e que em sua mala tinha um diploma de artes. Parecia uma artista de fato, mas não por causa de uma beleza estonteante, mas pela forma como puxava a cadeira na mesa do Bar de Seu Vicente, ao lado da nossa cativa, e acendia seu cigarro. Ficamos todos animados em saber mais sobre ela e, sem combinação nenhuma, mudamos a natureza de nossas apostas, já não interessava o campeonato de futebol, as lutas livres, as rinhas de galo. Nossa aposta era ela, quem conseguiria primeiro. Não faltavam visitas à sua mesa, gracejos, gabolices, entre outras coisas. Eu na minha mesa estava e nela ficava. Mas não sem perceber que ela nunca pagava nenhuma das bebidas pedidas, não sei se pelos meus colegas que viviam a lhe oferecer drinks ou se pelo Seu Vicente, que esquecia a tripa assada na frigideira, a famosa língua de boi na panela e o fogo do churrasco sumir por si só.
Ficava a espreita-la, numa posição que não oferecesse garantias da minha curiosidade. Afinal, estava ali para estar com meus amigos e voltar para minha Lourdes. Talvez tenha sido isso, talvez tenha sido... Não era nem mais nem menos do que meus companheiros de mesa. Mas um dia, levantando-se de sua cadeira, me interpelou e disse, como se fosse hoje ainda, percebi que gostas de cachaça, tenho em minha casa, uma que trouxe do México, um destilado especial... Nem esperei que o convite se concluísse, fui logo me despedindo e de braços dados, nos dirigimos para sua casa.
Não era bem um lar, não como o do meu reino, era colorido demais, iluminado de menos, cheio de lenços, fitas e uns objetos estranhos dispostos sem ordenamentos pelos poucos ambientes da casa. Pensei, cá comigo, seria a sua arte? Mas logo me desabonei daquele exterior que pertencia a ela e tratei de achegar nos braços seus. Não reconheci a mim no enlaço com ela. Na forma como, afogueados, nos livramos das roupas e eu das minhas vergonhas. Senti-me desalojado, porque começamos uma dança de corpos que quem guiava os passos não era eu, nem o ritmo nem a batucada, que em nada lembrava a valsa dos meus dias. Pensei que isso não era certo, pois homem não podia se deixar guiar. Mas atônito que estava, emborquei a tequila, que descia como pimenta, caindo nos seus enlaços. Ela não se fez de rogada, tirou o que restava das minhas roupas, agora desalinhadas, subiu no meu colo e me comeu. Comeu como quem tem a fome de mil dias, arrochando meu pescoço e mastigando minha virilidade. Não tive controle nenhum. Era dela e somente dela, que ora me apertava, ora me sugava, ora me bebia todo. Entendi a arte e o inusitado da vida, quando nos resumimos a uma só parte do corpo, que no corpo dela, lhe pertencia totalmente.
Fui embora tonto, amassado, desmamado, tempos depois, em direção a Lourdes. E desfalecido, me deitei. Quando acordei, não quis beber café ou água. Lourdes me achou estranho, como também estranhou, quando ao deitarmos, mais a noite, subindo por cima dela, juntei as suas pernas para penetrá-la, como se pudesse recriar o aperto e o arrocho da minha noite de tequila. Mas Lourdes era água. E minha sede era de aguardente.
Voltei ao bar, sentei-me à mesa, ao lado dela, mas ela já não me via, entretida que estava com meus amigos todos. E foi assim, durante dias, que fiquei perdido, perdi a ela, perdi meus amigos e perdi a mim. Cada um deles tinha aquele mesmo olhar que reconhecia quando fazia a barba de frente ao espelho. Vidrado, injetado e vazio de alguém que tinha misturado todos os drinks na esperança de sentir o gosto daquela bebida, daquela mamada.
Os dias foram se tornando longos, a noite mais longa ainda. E eu não pude mais esperar. Queria, novamente, o conforto do meu castelo, mas lá, já não era rei, era um desapropriado, desapropriado de mim mesmo. Foi quando decidi dar cabo nisso tudo e cá estou, depois das rezas e dos choros todos, aninhado nesse caixão, na vontade de sentir, em tão pequeno espaço, abaixo de sete palmos, o arrocho da braçada de pernas daquela mulher bezerra. Aquilo era que era mulher de verdade. E eu, já não era homem nenhum.