Benedita
estava coando o café quando Márcia entrou em sua casa. Vinha que vinha
apressada, parecia que um touro enfurecido estava nas suas saias. Nem mesmo
havia pedido licença, quando, ligeira, puxou a cadeira e se pôs a falar.
- Isso é
mesmo um absurdo. Bem que José disse que o tempo já é do fim dos dias. Primeiro
essas moças andaram de ficar empoleiradas em suas bicicletas ou na garupa das
motos, andando feito homem até tarde da noite. Você viu o que vai ter mais
tarde? Elas vão se reunir em passeata, a tal da marcha das vadias. Helena disse
que vai, eu já falei que não ia deixar de jeito nenhum. Ora essa, a pessoa nem
consegue ainda arcar com o peso dela e já acha que pode fazer o que quer, não senhora,
comigo não, quem come do meu pirão, tem que ouvir minha razão. Onde já se viu
isso? José não sai daquela porcaria de jogo, eu falo, falo, falo e tá pensando
que alguém me escuta. Nem pra ajudar com Helena ele serve, fica só me ignorando. Tou mesmo querendo saber se ela vai. Ah, se quero...
- Márcia,
pegue uma xícara para você, tem um pãozinho quente pra acompanhar. Não fique tão
aperreada, isso é coisa dessa juventude mesmo.
- E eu
quero lá saber de história de juventude. Desde que Helena entrou nessa
universidade, não vai mais à igreja, não conversa mais comigo, nem me responder
mais, ela responde, só faz balançar a cabeça. Como se não precisasse mais dizer
por onde anda ou com quem anda. Vêm uns colegas dela bem estranhos lá em casa. Eu acho
que esse povo nem tomar banho toma. Tudo com jeito de maconheiro. O pior é que
eu nem posso ler mais as cartas dela pra saber o que ela anda fazendo da vida,
agora é email pra cá, email pra lá...
Benedita
fez de conta que continuava ouvindo, suspirou e serviu o café. Servir é o que
sabia fazer. Pelo menos quem sabe Helena aprendesse outras coisas na escola. Benedita
nunca teve um filho, apesar de já ter engravidado três vezes. Meus anjinhos,
ela pensava, Deus levou para um lugar melhor. Ninguém merecia viver o inferno
em vida que ela mesma conhecia.
- ... essa
menina não sai da frente do computador, você acredita que outro dia, ela sentou
na cadeira umas quatro horas da tarde e quando eu levantei pra ajeitar o café
de José, ela ainda tava lá, na frente daquele troço. Diz que fica fazendo
trabalho da faculdade, mas eu sei que trabalho é esse... se fosse trabalho de
futuro, se ela pensasse no futuro não tinha terminado o noivado com Bruno. Aquele
sim era um genro de futuro, trabalhador. Melhor marido ela não ia arrumar, eu
disse, tanto que falei, mas parece que entra num ouvido e sai no outro. E Helena
só fica dizendo que essa não é a vida que ela quer pra ela, que quer se formar.
Se formar pra quê, quem é que vai cuidar dos filhos dela? Ela pensa o quê, que é
melhor do que os outros... Eu mesma mal consegui terminar o segundo grau, era
mamadeira, fralda pra lavar, tinha que botar o feijão no fogo e ainda aguentar
o choro de Helena, que nunca conseguia dormir mais do que três horas seguidas...
Helena,
pensava Benedita, parecia que tinha o fogo do mundo todo. Tão cheia de energia,
tão cheia de vontade, não sabia porque sua mãe não percebia o milagre que era
Helena. Sempre que via Helena saindo de casa, toda faceira, intuía que ela ia
fazer muitas coisas na vida. Mais do que ela mesma ou do que mesmo sua própria mãe,
que parecia só se ocupar da vida alheia. Tinha certeza que Helena não seria
rendida por homem nenhum. Às vezes achava que tolerava Márcia, por causa de
Helena. Às vezes achava que se tolerava, por causa de Helena.
- ... bem
que você podia falar com Helena pra ela desistir dessa idéia maluca de ir numa
marcha de vadia. Quem em sã consciência ia querer fazer parte disso? Ela fica
dizendo que é um protesto para parar a violência contra as mulheres que foram estupradas,
que é uma forma política de lutar pelo direito das mulheres. Eu não acho nada
disso, mulher que quer ser respeitada, não pode se dá ao desfrute. Como é que o
povo vai respeitar as mulheres se elas se chamam de vadia. Helena pensa que eu
não vi como é essa marcha, eu posso não ler como ela, mas não sou burra não, eu
acompanho tudo na televisão, eu vi a safadeza, um bando de mulher vestida com
roupa de quenga gritando, dançando...
Benedita
parou o que estava fazendo. Arrumou o cabelo atrás da orelha e resolveu também
tomar o café.
- Benedita,
você não vai dizer nada, ela sempre lhe escuta. Eu nem sei mais o que fazer. Afinal,
você é a madrinha dela e ela lhe quer muito bem. Tira essas maluquices da
cabeça dela. Essas moças pensam que podem andar na rua de todo jeito, depois
acham ruim quando um homem se aproveita.
- Pare Márcia, não fale assim, você não sabe do
que está falando!
- Ora,
como não sei? Você não viu o que aconteceu com a filha de Fátima, primeiro
começou a andar seminua, agora vive trazendo presente caro pra mãe dela, que
fica toda prosa dizendo que a filha é uma mulher de negócios, eu sei que negócio
é esse que ela faz... uma vadia, como essas moças que vão pra essas passeatas
com os peitos de fora.
Benedita
sentiu um calor subindo pelo seu corpo, sua garganta travou, como se tivesse um
bolo congelando seu íntimo. Frio e quente. Seus olhos passaram a não ver o que
estava à frente, e só conseguia ouvir o som dos socos, que levara a vida
inteira, o ruído de seu choro engolido nas tantas vezes que levara chutes em
seu ventre inchado, cuja promessa era a vinda dos seus anjinhos. Imagens suas,
no hospital, dizendo que tinha caído da escada, sua vergonha de ver seu ventre
costurado por estranhos toda vez que ele lhe enfiava suas ferramentas,
as cicatrizes todas de queimado em suas pernas e em suas nádegas, dos cochichos
dos vizinhos quando falava que tinha sofrido um acidente lavando a roupa no
domingo. Seu corpo, tomado agora pela sua memória, parecia somar a mudez de uma
vida inteira. Começou a se arranhar, rasgando suas vestes, enquanto
ia em direção ao banheiro, deixando Márcia pasmada, quando também começou a se
maquiar. Não era uma maquiagem como a das estrelas, era a maquiagem de uma
mulher que queria dar o rosto ao mundo.
- Criatura,
pra onde você vai assim, tão tresloucada? João daqui a pouco chega da oficina.
Benedita não
parou seu tempo para responder, simplesmente continuou o seu frenesi, desarrumando
as vestes que sempre fizera questão que permanecessem em ordem. Enquanto fazia
isso, com o rosto afogueado, ia jogando pelos cantos do quarto as roupas
arrumadas pela cor, todas quase postas no mesmo lado do armário, cinzas, beges,
brancas, até achar o xale rosa com miçangas verdes que Helena havia bordado para ela, quando ainda
era mocinha. À medida que ia se desnudando, deixando seus
seios caírem sobre seu corpo, ia rasgando as meias que lhe cobriam as pernas, procurando,
na caixa de costura, sua tesoura, a mesma que muitas vezes pensara em usar
no João, para cortar as saias que estava vestindo. Seus seios que nunca alimentaram ninguém, que
nunca foram beijados com ternura, que foram sempre cobertos até o pescoço para
disfarçar as marcas roxas, amarelas, verdes, que tratava passando arnica, ficaram
agora desnudos e pesados ao sabor do calor da tarde. Não eram os seios de alguém
que se orgulhasse da juventude dos seus dias, mas nunca se orgulhara tanto deles
quanto agora, deixando-os à mostra, enfeitados pelas contas verdes do seu xale,
como se aquelas fossem as joias mais raras e exclusivas.
Márcia, com
sua tagarelice infindável, parecia uma metralhadora, dizendo que eu estava louca, sim, eu
estava louca, louca para falar, louca por já ter ouvido tanto, louca por ter me
calado sempre, por ter perdido os filhos que nunca tive, por ter desistido de
estudar, por ter me apaixonado por João e por achar que ele sempre tinha razão,
mesmo naqueles dias, quando ele me culpava por ter se exaltado e eu aceitava, tão culpada.
- Cala a
boca, Márcia, já lhe escutei o bastante!!!
- Mas
Benedita, você está parecendo uma vadia, nua e com a cara pintada desse
jeito...
- Sim, eu sou uma vadia! – disse Benedita, enquanto saia de casa a
procura de Helena.