quinta-feira, 12 de julho de 2012

A confissão de Palimp VI




Você já arrumou o gravador? Já posso começar? Bom, me desculpe o nervosismo, mas nunca tinha feito isso antes. Não que eu não desejasse, mas sempre fiquei receoso. Ficava até receoso de dizer receoso e não receosa. Mas acho que já posso falar assim, como sujeito homem. Engraçado, sujeito homem era sempre como meu pai se referia aos amigos e eu sempre alimentei, bem lá no fundo, uma vontade de ouvi-lo me chamar assim também. Que Deus o tenha ou Lucífer, sei lá. Não cabe a mim adivinhar quem o recebeu depois de morto. Tá, tudo bem, vou tentar começar do início, é porque é difícil para minha pessoa saber exatamente quando foi que eu me reinicei, apaguei meus velhos arquivos e escolhi novos programas. Sei que minha história passa ao longe da Branca de Neve, mas o espelho sempre foi um personagem fundamental. Era amor e ódio. E isso é muito difícil. Os espelhos estão em todos os lugares e são muitos. Experimenta ir num shopping ou até mesmo se refrescar nos banheiros... Era um verdadeiro martírio. Por isso sempre preferi os banheiros dos postos de gasolina, pois, ainda que ardidos de urina, era um alívio que nas paredes só pudesse ver o encardido dos azulejos. Cresci assim, a fugir dos espelhos, porque acreditava que podia me refugiar na imagem que havia criado em meus sonhos. Nada disso era explícito, raramente as pessoas percebiam, mas também, raramente me percebiam. Tinha umas coleguinhas da escola que diziam, vem cá menina, vem botar um batom. Eu ia e não ia. Ficava de frente a bancada, enquanto elas passavam e olhava para frente sem que na frente nada existisse. As amiguinhas, ah, as amiguinhas, quem será que as inventou? Por mim, pegava naqueles pescoços delgados e torcia feito mainha ao matar a galinha de domingo. Na hora dos esportes, então, era um drama. Nunca tinha sido convocada para as danças que eram ridiculamente espalhafatosas naqueles shows de ginásio de esporte. Ah, você quer saber por que eu falo convocada e não convocado. Me perco no meu próprio passado, como nele eu era perdido. Mas qualquer coisa você revisa no editorial. Regula os pronomes. Aproveita e ajeita também meu português que é pra ver se combina com o talho desse uniforme. Eu ainda tou me adaptando. Hahahha. Adaptando, parece que vivo a me adaptar. Quando não é uma coisa é outra. Só sei que a escola me matou. Matou pedaços dentro de mim como nem minha família, até então, tinha conseguido, pois em casa eu brincava de menino invisível, e nunca nenhum deles me viu. Sabe aquelas brincadeiras que não custam nada, não dependem dos brinquedos que você ganha e do qual nenhum era o que tinha sonhado?! Bem, era assim mesmo. Dia das crianças, então, nada de ficar feliz. Era apenas um rosto amarelo, não, não havia sorriso, desembrulhando bonecas das mais variadas e olhando de esguelha para os joguinhos dos vizinhos. Ingrata, era assim que me chamavam e tudo que eu queria era uma bicicleta pra virar bicho solto no mundo. No natal, ganhei uma Sissi, dessas róseas, com direito a cestinha e tudo. Ia passear com as colegas. Uma vez ela disse, seu braço é estranho, parece que tem músculos, parece braço de menino. O nome dela era Marina e eu me vi perdidamente apaixonado. Marina era linda, morena, toda pintada, olho agateado, sorriso fácil, maneiras bruscas. Costumava ser a megera da escola, tão clichê isso, mas eu a seguia assim mesmo, seguia como se tivesse sido adestrado. Jogava os jogos que ela queria, as brincadeiras que escolhia, carregava suas tralhas, ousava passar do seu perfume, só para lembrar o cheiro dela. Até o dia que Carlos, em meio à sala toda, disse que eu era sapata e que queria Marina só pra mim. Até hoje me lembro das risadas. E eu, ali, abobalhado, sem saber o que era sapata. Mas desse dia em diante, só usei sandálias de dedo. Marina ficou pra trás e eu já não sonhava com ela, mas sonhava em ser ela, sonhava até em, sendo ela, estar com Carlos. Me odiava por isso, e comecei a odiar também os sonhos, assim como os espelhos.  Já não queria mais ir à escola e estando lá me refugiava nos livros até o dia em que pude ir embora. Na faculdade, entrei no curso de línguas. Queria aprender a falar todas elas e enquanto isso me calava no português. Não tinha interesse. Queria ir pra bem longe. Não sabia que ia voltar e que hoje ia falar com você. Que ironia, não? No mundo conheci pessoas como eu, sem cara, sem rostidade, aprendi conceitos, fiz oficinas de filosofia, vi que ser estranho era capital simbólico nas grandes cidades. Foi quando eu decidi mudar, depois de assistir aquele filme, aquele que o rapaz colecionava pele de moças. Como era o nome...? O silêncio dos inocentes. Queria uma nova pele. Uma pele que pudesse encarar o espelho e podar seus pêlos. Me inscrevi em programas públicos, mandei emails, mandei cartas, preenchi arquivos, fiz séculos de terapia, só nunca falei daquele filme. Participei de grupos de solidariedade de gordos. Ora, por que fiz isso? Eles também queriam arrancar pedaços de si. Me identifiquei com os androides, participei de debates sobre androginia, sobre os queers e a leva toda. Enquanto isso me envolvia com uns e outras. Até que a encontrei. Dra. Frankie Stein, tão século XIX, tão século XXI. Ela topou fazer a transferência. E assim, me transferi para outro corpo. Um corpo de pronomes próprios. Foi até divertido servir de modelo para suas experiências. Claro que eu gostava dela, nunca a quis mal. Não fique ansioso, já digo... mas é tão óbvio porque a matei, porque não poderia ser diferente... ela era a memória de quem eu fui antes. Com ela, eu não teria pertencimento. E, por favor, quando você concluir, não coloque o nome que me deram ao nascer, mas o que me deram nos jornais, sim, meu nome é Palimp VI, o único presente que me deram e que eu quis que fosse m---eu.