Quando ela vinha, seus saltos tocavam uma música primitiva, acompanhada
pelo bambolear dos seus quadris. Os rostos viravam em uníssono e as mais
diversas reações se desenhavam com o seu gingado, numa mistura nada homogênea.
Mas ela passava, pela calçada, religiosamente, ao fim da tarde. A praça, então,
parecia diminuir de ritmo, como se naquele tempo-espaço, tudo ao redor se
congelasse, e ela, apenas ela, adquirisse a mobilidade do mundo ao dar a volta
na lua.
Não conhecia quem a conhecesse de perto. Nenhum de nós. Ela nunca olhava
de lado, tampouco para cima ou para baixo, seu olhar era tão reto, como a
desconfiar da fartura de suas curvas todas. Diziam que ela era uma mulher do
mundo, diziam que ela era mulher de um só, diziam que ela era dela mesma. Diziam
muito, mas nada que viesse de perto.
Até que um dia, a cidade enfeitada de bandeirolas coloridas, mesinhas
floridas, palco armado, anunciou os festejos do São João, fechou as portas do
comércio mais cedo e, ao fim da tarde, convidou seus citadinos para juntos, e distribuídos
entre todos os quiosques, alimentados pela luz elétrica, já trêmula pelo
altear da fumaça dos fogos e fogueiras, dançarem ao sabor do milho assado e dos
quentões.
Ainda era menino moço, emudecido pela timidez da minha voz e pela inexperiência
dos meus gestos. Mas era um rapaz de olhar guloso e queria dar conta de ver
tudo. Apenas lamentei a calçada tão cheia, temia não vê-la hoje. Os colegas
logo me acharam e me entretive em meio a tantas figurações. Parecia que Dona
Maria estava triste ao lado de Seu José que, ritmadamente, erguia seu copo
suado de gelado para os seus bigodes como a sorver a sede do mundo todo. Percebi
que os pés de Dona Maria, por baixo da mesa xadrez, seguiam o ritmo do trio de
zabumba, triângulo e sanfona, como se o direito e o esquerdo estivessem um nos
braços do outro.
Raimundo, viúvo há uma quinzena de anos, não saia do pé do poste, como
se ele mesmo tivesse a companhia para o fim dos seus dias. Elaine, do outro lado
do arraial, desfolhava o verde da cerca de coqueiros, juntando os palitinhos
como se fosse abrir uma fábrica de pipas. Fernanda, toda vestida de coronel,
parecia a mesma, forte, longa e de cara limpa. Francisco, todo serelepe,
convidava todas as moçoilas para bailar, nenhuma lhe fazendo menção.
Enquanto cobria os ouvidos com as mãos à espera do pipocar dos traques,
ouvi o tilintar do salto e meu coração zabumba esperou. Lá estava ela, vindo,
mas dessa vez seu andar era feito de giros. Quem estava perto, deu passagem. Quem
estava longe, estreitou o olhar. E ela, de frente ao palco, rodava a saia,
deixando entrever suas pernas torneadas, ao mesmo tempo em que sua boca
vermelha, entoava junto, as músicas que, para mim, passaram a soar com
quentura. Procurei, rapidamente, sua companhia. Não havia, ela estava só. Dançando
não abraçada com um outro, mas com os braços erguidos em floreados. Não compreendia
como um mesmo corpo podia ir a direções tão diferentes e parecer estar indo
junto. Sua dança, de tão altiva, parecia ocultar o segredo da natureza. Era uma
força. E à medida que ela entoava e rebolava no meio daquele improviso de salão
no centro da praça, me remexia todo internamente, como se dançasse uma quadrilha inteira.
Ela passou e girando, deu um abraço em Raimundo, tirou Dona Maria para
dançar, deu um selinho na boca de Fernanda, que ficou corada com mil
maquiagens, boca toda avermelhada, fez um coração de coqueiro para Elaine, que convidou Francisco a bailar, esvaziou o copo de Seu José, que sem ter o que mais beber,
começou a olhar novamente para os pés casados de sua mulher, e se foi, não sem
antes sapecar meu rosto de beijinhos.
Ela nunca mais apareceu na cidade depois dessa noite. Mas, nós, que
nunca a tivemos, tão perto, deixamos de comparecer a festa de São João. Soube tempos
depois que, naquela mesma noite, tinham sussurrado em seu ouvido, enquanto a
enlaçavam pela cintura que, finalmente, haviam encontrado o encanto do mundo
todo e que ela podia desaguar em terra firme. E assim, ela teria partido, feito
chuva, a fertilizar a terra alheia.