domingo, 3 de junho de 2012

A generosa



Quando ela vinha, seus saltos tocavam uma música primitiva, acompanhada pelo bambolear dos seus quadris. Os rostos viravam em uníssono e as mais diversas reações se desenhavam com o seu gingado, numa mistura nada homogênea. Mas ela passava, pela calçada, religiosamente, ao fim da tarde. A praça, então, parecia diminuir de ritmo, como se naquele tempo-espaço, tudo ao redor se congelasse, e ela, apenas ela, adquirisse a mobilidade do mundo ao dar a volta na lua.

Não conhecia quem a conhecesse de perto. Nenhum de nós. Ela nunca olhava de lado, tampouco para cima ou para baixo, seu olhar era tão reto, como a desconfiar da fartura de suas curvas todas. Diziam que ela era uma mulher do mundo, diziam que ela era mulher de um só, diziam que ela era dela mesma. Diziam muito, mas nada que viesse de perto.

Até que um dia, a cidade enfeitada de bandeirolas coloridas, mesinhas floridas, palco armado, anunciou os festejos do São João, fechou as portas do comércio mais cedo e, ao fim da tarde, convidou seus citadinos para juntos, e distribuídos entre todos os quiosques, alimentados pela luz elétrica, já trêmula pelo altear da fumaça dos fogos e fogueiras, dançarem ao sabor do milho assado e dos quentões.  

Ainda era menino moço, emudecido pela timidez da minha voz e pela inexperiência dos meus gestos. Mas era um rapaz de olhar guloso e queria dar conta de ver tudo. Apenas lamentei a calçada tão cheia, temia não vê-la hoje. Os colegas logo me acharam e me entretive em meio a tantas figurações. Parecia que Dona Maria estava triste ao lado de Seu José que, ritmadamente, erguia seu copo suado de gelado para os seus bigodes como a sorver a sede do mundo todo. Percebi que os pés de Dona Maria, por baixo da mesa xadrez, seguiam o ritmo do trio de zabumba, triângulo e sanfona, como se o direito e o esquerdo estivessem um nos braços do outro.

Raimundo, viúvo há uma quinzena de anos, não saia do pé do poste, como se ele mesmo tivesse a companhia para o fim dos seus dias. Elaine, do outro lado do arraial, desfolhava o verde da cerca de coqueiros, juntando os palitinhos como se fosse abrir uma fábrica de pipas. Fernanda, toda vestida de coronel, parecia a mesma, forte, longa e de cara limpa. Francisco, todo serelepe, convidava todas as moçoilas para bailar, nenhuma lhe fazendo menção.

Enquanto cobria os ouvidos com as mãos à espera do pipocar dos traques, ouvi o tilintar do salto e meu coração zabumba esperou. Lá estava ela, vindo, mas dessa vez seu andar era feito de giros. Quem estava perto, deu passagem. Quem estava longe, estreitou o olhar. E ela, de frente ao palco, rodava a saia, deixando entrever suas pernas torneadas, ao mesmo tempo em que sua boca vermelha, entoava junto, as músicas que, para mim, passaram a soar com quentura. Procurei, rapidamente, sua companhia. Não havia, ela estava só. Dançando não abraçada com um outro, mas com os braços erguidos em floreados. Não compreendia como um mesmo corpo podia ir a direções tão diferentes e parecer estar indo junto. Sua dança, de tão altiva, parecia ocultar o segredo da natureza. Era uma força. E à medida que ela entoava e rebolava no meio daquele improviso de salão no centro da praça, me remexia todo internamente, como se dançasse uma quadrilha inteira.

Ela passou e girando, deu um abraço em Raimundo, tirou Dona Maria para dançar, deu um selinho na boca de Fernanda, que ficou corada com mil maquiagens, boca toda avermelhada, fez um coração de coqueiro para Elaine, que convidou Francisco a bailar, esvaziou o copo de Seu José, que sem ter o que mais beber, começou a olhar novamente para os pés casados de sua mulher, e se foi, não sem antes sapecar meu rosto de beijinhos.

Ela nunca mais apareceu na cidade depois dessa noite. Mas, nós, que nunca a tivemos, tão perto, deixamos de comparecer a festa de São João. Soube tempos depois que, naquela mesma noite, tinham sussurrado em seu ouvido, enquanto a enlaçavam pela cintura que, finalmente, haviam encontrado o encanto do mundo todo e que ela podia desaguar em terra firme. E assim, ela teria partido, feito chuva, a fertilizar a terra alheia.