Nós já
nos arrastávamos juntos há anos. Ele levava o cachorro para passear, eu fazia o
café da manhã. Ele saia para o trabalho, eu me dirigia para a cama. Ele era
responsável pela feira, eu pagava a conta da luz. Dividíamos o mesmo quarto,
mas não a mesma língua. O apartamento que costumávamos trocar a cada dois anos,
em meio a algazarras e expectativas, quando escolhíamos os novos móveis ou
repaginávamos os nossos velhos troféus, virara um ritual
banal, silencioso, mecânico. Já era o nosso nono apartamento. E eu havia nascido
no décimo dia de uma gravidez de quase dez meses. A chegada do prazo para o décimo
apartamento estava próxima e nós estávamos cada vez mais distantes.
Apesar de
não nos falarmos, eu não queria abrir mão dos nossos silêncios. Apesar de não
nos tocarmos, também não queria abrir mão dos possíveis esbarros entre a
bancada da cozinha e a sala de estar. E assim, íamos, juntos, trilhando
caminhos tão díspares.
Mas ele
era presença conhecida e ainda que me debatesse entre ficar ou ir, sozinha
enfim, meu corpo travava e o ar que entrava em meus pulmões era racionado,
entre ansiosas inspiradas e espaçadas golfadas.
Ontem,
ele chegou com o jornal e pude ver que passeava por entre as páginas dos
classificados. Refugiei-me por entre o edredom, até que E. me liga, chamando
para passearmos e atualizar as novidades. E., como sempre, tinha muitas e rimos
muito juntas, brincando de tudo bem, enquanto tomávamos, sentadas, muito café
com amarula, até que chegou aquele momento em que não pude mais engolir e disse
a ela:
- Minha
linda, tão bom estar com você. Mas não aguento mais estar comigo.
- O que
houve de novo?
- Não é
o que houve de novo, é o que não houve...
- Como você
está com ele?
- Nós,
há muito, não estamos, mas não consigo ir. Temo a solidão. Mas sei que nossa
relação está com o prazo de validade vencida, tal como o vinho vinagrado, tal como
o queijo embolorado e que há muito não bebo ou como. Meu corpo está como o solo
que antes abrigava um açude, seco, rasurado, esquadrinhado em fendas, esvaziado
de presente.
- Por
que você não parte para outra história?
- Como?
Eu não sei como fazê-lo. Não sei mais como é estar comigo apenas, só sei como é
estar sem mim. Eu já tentei antes, tentei me soltar, me excitei, inventei
outras histórias, mas sempre aquele breque de não saber se ainda era desejável,
se ainda alguém se interessaria por mim, se ainda saberia como tocar lábios
alheios... Eu não sei de mim sem ele.
- ...
-
Queria meu grito do uirapuru ao amanhecer, minha calda de sereia quando os
barcos se avizinharem, meus cabelos longos de outrora que acobertava minhas
mini-saias, queria minha libido solta a correr o mundo, gritar ao gozar e me
surpreender, de maneiras que nem possa imaginar como, que minha memória não alcance,
descobrindo uma em mim que desconheço, quero, sobretudo, me surpreender.
- Faça.
Crie novos prazos, valide novas possibilidades, experimente ficar consigo... Você
consegue, afinal, alguém que habita tanto desejo, tem que se permitir.
- Eu
quero, tenho medo, desejo profundamente, escureço, continuo, me debato, aposto,
me perco... Preciso de conselhos.
E.
ficou parada. Depois do meu desabafo, se foi. Eu também me fui, sem conselho algum. Uma semana depois, soube, por amiga em comum, que E. pediu licença
sem vencimento do trabalho e fora tentar a vida em Paris, tinha voltado a
pintar. Seu primeiro quadro vendido, ou trocado por bisnagas e conhaques,
chamava-se Café avec Amarula.
Fiquei
feliz. Tinha finalmente me surpreendido. Dez meses depois, na minha décima
casa, no meu primeiro café, brindei sozinha, grávida de mim.