quinta-feira, 26 de abril de 2012

Café avec amarula



Nós já nos arrastávamos juntos há anos. Ele levava o cachorro para passear, eu fazia o café da manhã. Ele saia para o trabalho, eu me dirigia para a cama. Ele era responsável pela feira, eu pagava a conta da luz. Dividíamos o mesmo quarto, mas não a mesma língua. O apartamento que costumávamos trocar a cada dois anos, em meio a algazarras e expectativas, quando escolhíamos os novos móveis ou repaginávamos os nossos velhos troféus, virara um ritual banal, silencioso, mecânico. Já era o nosso nono apartamento. E eu havia nascido no décimo dia de uma gravidez de quase dez meses. A chegada do prazo para o décimo apartamento estava próxima e nós estávamos cada vez mais distantes.

Apesar de não nos falarmos, eu não queria abrir mão dos nossos silêncios. Apesar de não nos tocarmos, também não queria abrir mão dos possíveis esbarros entre a bancada da cozinha e a sala de estar. E assim, íamos, juntos, trilhando caminhos tão díspares.

Mas ele era presença conhecida e ainda que me debatesse entre ficar ou ir, sozinha enfim, meu corpo travava e o ar que entrava em meus pulmões era racionado, entre ansiosas inspiradas e espaçadas golfadas.

Ontem, ele chegou com o jornal e pude ver que passeava por entre as páginas dos classificados. Refugiei-me por entre o edredom, até que E. me liga, chamando para passearmos e atualizar as novidades. E., como sempre, tinha muitas e rimos muito juntas, brincando de tudo bem, enquanto tomávamos, sentadas, muito café com amarula, até que chegou aquele momento em que não pude mais engolir e disse a ela:


- Minha linda, tão bom estar com você. Mas não aguento mais estar comigo.

- O que houve de novo?

- Não é o que houve de novo, é o que não houve...  

- Como você está com ele?

- Nós, há muito, não estamos, mas não consigo ir. Temo a solidão. Mas sei que nossa relação está com o prazo de validade vencida, tal como o vinho vinagrado, tal como o queijo embolorado e que há muito não bebo ou como. Meu corpo está como o solo que antes abrigava um açude, seco, rasurado, esquadrinhado em fendas, esvaziado de presente.

- Por que você não parte para outra história?

- Como? Eu não sei como fazê-lo. Não sei mais como é estar comigo apenas, só sei como é estar sem mim. Eu já tentei antes, tentei me soltar, me excitei, inventei outras histórias, mas sempre aquele breque de não saber se ainda era desejável, se ainda alguém se interessaria por mim, se ainda saberia como tocar lábios alheios... Eu não sei de mim sem ele.

- ...

- Queria meu grito do uirapuru ao amanhecer, minha calda de sereia quando os barcos se avizinharem, meus cabelos longos de outrora que acobertava minhas mini-saias, queria minha libido solta a correr o mundo, gritar ao gozar e me surpreender, de maneiras que nem possa imaginar como, que minha memória não alcance, descobrindo uma em mim que desconheço, quero, sobretudo, me surpreender.

- Faça. Crie novos prazos, valide novas possibilidades, experimente ficar consigo... Você consegue, afinal, alguém que habita tanto desejo, tem que se permitir.

- Eu quero, tenho medo, desejo profundamente, escureço, continuo, me debato, aposto, me perco... Preciso de conselhos.

E. ficou parada. Depois do meu desabafo, se foi. Eu também me fui, sem conselho algum. Uma semana depois, soube, por amiga em comum, que E. pediu licença sem vencimento do trabalho e fora tentar a vida em Paris, tinha voltado a pintar. Seu primeiro quadro vendido, ou trocado por bisnagas e conhaques, chamava-se Café avec Amarula.

Fiquei feliz. Tinha finalmente me surpreendido. Dez meses depois, na minha décima casa, no meu primeiro café, brindei sozinha, grávida de mim.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Carta



Falei rapidamente com você ao telefone. Anunciei que havia tido um sonho e que esse tinha sido doce, como um chocolate apimentado ou como uma tequila desaquecida num gole de cerveja. Quente e refrescante. Porém, você estava ao telefone, guiando entre afazeres, quando me disse apressadamente: - Escreva seu sonho.

Nunca tive presteza com as palavras, pois elas me fogem sempre que vou ter a chance de vê-lo ou ouvi-lo, na sua voz ritmada, pausadamente trêmula, que continuamente anuncia, com tanta delicada firmeza, gostar da mudez.

Como tagarelar, então?!  E apenas tagarelo, tagarelo e tagarelo tanto que a ocasião se aproxima do burlesco, principalmente, quando ao me olhar de volta, seus olhos sorriem, com a tolerância que, aparentemente, lhe é peculiar.

Como sempre, me perco em arrodeios. E não falei do meu sweet dream. Nele, estávamos desnudos e arfantes. E tontos, não sei se das cervejas ingeridas ou se da estranheza do encontro. Como todo sonho, esse me pareceu surreal, como se dentro da doçura dele, soubesse que não estávamos dormindo ou tampouco acordados.

Não houve diálogos, mas essa não era a tal estranheza, pois quando falávamos dos compostos químicos, da ecologia do mundo, da globalização e do quiproquó dos dias, o silêncio nunca fora uma problemática. A mudez sempre vinha quando estávamos flutuando no ar e a paisagem surreal construía esse mundo de expectativas, em que íamos desfolhando os estágios da consciência (?) ao mesmo tempo em que, na secura do silêncio, vinha à liquidez dos toques, das experimentações.

Não sei se era essa a carta que você espera ler, pois queria apenas lhe falar do doce sonho que vivi em algumas horas, talvez em instantes, talvez em anos, tão simultâneo como meus flashbacks, meus desejos e a própria vida, em seu eterno, e surpreendente, vir a ser.

E nesse introito todo, minha timidez não me deixa narrá-lo, com os pormenores de uma escrita afetada, ainda que o viva em secretas reminiscências. Mas...

Que sua noite, ao descer sobre seu corpo, venha como uma caixinha de sonhos, daquelas recheadas de doces.


Londres, agosto de 1983.
Ps.
Either way, I don't wanna wake up from you.  
(Turn the lights on) – Eurythmics.
   

terça-feira, 10 de abril de 2012

Short cuts ²


Aquela era a manhã do dia que traria mil naufrágios e novas ilhas. E eu, ainda ancorada, pensava apenas no peso do pernil no forno, no terceiro conserto do carro, no perigo iminente dos fogos de artifício – sem saber que eles arderiam, naquela noite, mais em mim que nos ouvidos dos cães.

Era tarde quando cheguei na casa que já me vira em festas outras, com mulheres outras, e com tristezas várias. Cheguei sem saber que aquela era a noite que me levaria a novas ilhas, mil naufrágios. Rápida, o pernil imenso na assadeira felizmente encobrindo meu rosto que teme tanto ser visto, atravessei a sala evitando ainda saber quem estava ali. E a voz familiar me diz  “por que tão tarde?”. Eu, na resposta constrangida, digo algo tolo sobre o pernil e meu embaraço, que ninguém nota, cresce e cresce.

Eu nunca a via. Nunca só. Ou melhor, uma ou duas vezes, talvez no supermercado, e eu sempre hesitante, temendo um oi que não teria retorno, ou um olhar que demonstrasse sua total falta de familiaridade com quem eu sou. Quem eu sou? Quem eu era, ali? E eu não sabia que era ela que me levaria a novos portos quando me apresentou a alguém, na festa, falando sobre meu humor ácido. Não gostei da acidez, eu que planejo doçuras, e tentava entender onde o erro, onde a força escondida das palavras que digo sem saber. De novo fora de mim, faço outro comentário, monotemático, sobre como ela deveria mesmo era ficar com C. Num canto da cozinha, depois, ela me pergunta por quê. Por quê C. ? Por que eu deveria estar preocupada com C? Porque eu desejava por alguns instantes que o tempo se voltasse sobre si mesmo e eu pudesse recomeçar, sendo séria e doce e não ácida, e que não falasse tantas bobagens de forma compulsiva apenas porque aquele silêncio (ela sempre foi a pausa entre as notas) me pesava como devem pesar as patas dos centauros. E nesse tempo espiralado eu não seria eu e nem teria âncoras de séculos, e poderia então desejá-la como eu mesma e não através das possibilidades de C.

Mas mesmo então sem ser outra, sendo eu,  com esse sorriso torto, eu digo o que não se diz, na expectativa de que minha boca de seriedade e riso pela metade pudesse ser ali a possível contenção da águas, aquilo que impedisse o desejo – aquele mesmo que se instaurara quando eu disse “gostosa” – de virar o rio que varreria com violência as margens e as tornaria férteis pra sempre. Mas eu disse. E o meio sorriso nada pôde contra aquilo que se desenhara tão precisamente com as palavras.

Outras, em seguida, sussurradas (ela é toda silêncios, já disse?) perto da minha nuca, me fizeram ouvir o rangido das âncoras sendo arrancadas. Era o mar, o rio, começando me levar àquelas outras ilhas. Um naufrágio de quem eu pensava ser, outro naufrágio de onde eu pensava estar.

O resto da noite,  xadrez interminável. A Torre (que, eu não sabia, ainda, viria a ruir).Os olhos se cruzando no jogo. As palavras se cruzando, em conversas sobre redes – ela, parte do tempo, numa rede em que eu a via em intervalos oscilantes.

Eu queria não ser eu. O tempo – serpente devorando o próprio rabo, me fazia inventar teses, teorias, desejos de um futuro que não era o meu, mas que a faziam falar. Ela, cheia de silêncios, me olhava atenta, e falava outras teses e teorias que eu devia ler. Entre nós, então, se tecia um começo. E prometíamos ambas mais e mais palavras, pensando de fato que as frases podem ter mãos, dedos, boca, língua, e que nos tocávamos através delas. Meu desejo a tocava entre sílabas, entre as frases improvisadas que anunciavam outras tantas que nos diríamos ainda, pela vida (ou mar) adentro.

Como agora.

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presente. não aquele momento de tempo entre o passado e o futuro. presente, algo que se ganha em alguma ocasião – especial ou não. talvez esse seja o ponto de partida. presente de crispina – um desses seres que pode habitar apenas a nossa imaginação. nesse caso, uma êre. presente anunciado nas semanas finais de 2011. sequer imaginei o que poderia ser.

o presente insuspeito veio na passagem do ano: chegou com 2012. na forma de uma emoção inesperada. daquelas que chegam sem avisar, alteram os trajetos e mudam os planos.

festa de réveillon. já estou um pouco alta. animada, com as amigas mais próximas por perto. mas com a sensação de que faltava ainda t. chegar. amiga? não exatamente. até, então, alguém que tinha encontrado 2 vezes, apenas. mas que, por essas coisas inexplicáveis, gostava de encontrar. apesar da inquietação e da falta de palavras que me tomava ao encontrá-la. supunha ser pq sua sagacidade, humor e velocidade de pensamento me faziam parecer boba.

- “pq só chegou agora?” (perguntei, como se houvesse intimidade suficiente para tal questionamento)

- “eu atrasei, mas trouxe o pernil, tá?”

hum?! (pensei: o que o pernil tem a ver com isso... com a vontade de te reencontrar)

a festa segue animada. fumo um pouco, danço outro pouco, acompanho os movimentos de algumas pessoas até que t. vem conversar comigo (sim, não conseguia ‘puxar’ muito assunto com ela, aquela sensação de se sentir idiota falando com alguém interessante, inteligente e sagaz). me pergunta algo sobre namorada: se estou namorando, se ‘peguei’ minha professora de ioga, pq não namoro uma amiga em comum. respondo a tudo – quase formalmente – até que interrogo, pq raios ela insiste que eu namore nossa amiga em comum.

- “pq?” – diz ela – “pq te acho uma gostosa e se não fosse casada, te pegava”. e saí. pra variar, fiquei sem palavras. cérebro já levemente lento, pelo álcool, penso: “mas que cantada barata”. tarde demais, a cantada barata no meu ouvido se fez acompanhar de reações inesperadas no meu corpo: aquele arrepio que percorre a espinha, acompanhado do frio na barriga e acelerar dos batimentos cardíacos. 

preciso dizer que não pensei em mais nada, depois disso? estaria mentindo, pensei e muito: em como retribuir a “cantada barata”. hum, só com outra.

na primeira oportunidade, colei minha boca em seu ouvido, pra dizer: “adoraria fazer yoga contigo”. ah, e a vontade de rir ante a surpresa nos olhos dela... até o final da festa, pude captar pequenos detalhes: seu jeito de dançar (os movimentos do corpo mesclados ao olhar), as mãos pequenas (como gosto), a voz deliciosa e envolvente...

sequer poderia imaginar os próximos movimentos...

***

Ps. As personagens emergiram do texto e deixaram suas próprias marcas. E que belas, são essas marcas. 

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Short cuts




Campinas, a cidade brilhava em meio à parafernália própria dos arranjos de fim de ano. Os comentários, na padaria onde tomava meu café com leite e comia o pão quentinho e dourado da chapa, eram da nova decoração no apartamento dos famosos cantores sertanejos e seus robôs de natal. Eram até bonitos, apesar de um tanto pedante. Mas a cidade brilhava. Eu nem tanto. Tinha só aquele brilhinho íntimo, ainda um tanto escondido das amigas em comum, esperançosa que estava de que na reunião da casa de Mariah, a fosse encontrar. Sei que não a veria sozinha, sabia que teria que cumprimentar a sua companheira, mas apenas eu sabia do pisca-pisca que habitava meu corpo. Enquanto caminhava pelas alamedas de Barão Geraldo, sombreada pelo seu verde, me via sorrindo boba, me via sorrindo ansiosa. Parecia que constelava comigo mesma.

Das mulheres, amigas das amigas, ela sempre me pareceu a mais bela. Daquelas que a beleza parece falar diretamente a mim. Por isso, decidi ir. Essa minha fala secreta, apenas me pertencia. Talvez nem ela mesma escutasse, sempre fui tão discreta, e nos raros, porque escassos e preciosos, encontros em que pude vê-la e ouvi-la, ela sempre se ocupava em me apresentar a uma conhecida, realçando benesses. Parecia que me ver sozinha a incomodava. Eu, delicadamente, me declinava, como se sozinha me bastasse, mas o que mais me bastava era essa bela fala secreta que, segura no meu íntimo, me deixava sorrir enquanto ela me ofertava possibilidades outras.

A noite chegou, mas seu manto escuro demorou a baixar. Era Campinas, e os dias estavam mais longos e secos. Eu, na minha urgência despretensiosa, comecei a me preparar. Ritualística como sou, ainda ampliei meu corpo na yoga, o banhando em seguida, sem deixar de lado meu chá de carqueja, sabia que veriam vinhos. E sabia que não seriam poucos.

Parti rumo à casa de Mariah. Estava cheia, como de costume, e todas as amigas ali estavam presentes, as risadas alegres, os beijos afetuosos. Ainda não a havia visto, mas sentia sua presença, já ensaiando algumas frases.

Avistei ao longe e logo ela se aproximou. Chamou-me de gostosa ao pé do ouvido, depois de algumas taças, também cantei ao seu. E ficamos assim, entre as rodas e os círculos todos, a nos esbarrar. Ela já não me prometeu companhias alheias. Era ela, talvez, sempre tenha sido.

Os borbulhantes estouraram com os abraços todos de feliz ano novo. Com mais alguns brindes, fui embora. Talvez ela tenha ficado, não só com sua companheira, mas também comigo, porque no dia seguinte, ela me mandou dizer: Fique, não vá. Eu fui, mas ainda estou, estamos em maio, e desde então nunca mais falei sozinha a minha linguagem secreta. Short cuts.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Recalques



Já tinha um tempo que ele me deu alta, apesar de não estar tão em alta assim.  Como tudo aquilo que me motivou a buscá-lo, cinco anos atrás, me senti dividida, entre o atestado de poder me ir e a vontade de ainda ficar. Ele, com seus óculos aros de tartaruga, suas têmporas grisalhas e sua meia-barba, me passava tanta sabedoria, que parecia poder me dizer como viver, novamente, minha vida. Mas fui... Fui-me daqueles encontros semanais, religiosamente aguardados, furtados e, porque não, cabulados. Ele era a minha consciência ou como gostava de pensar sorrindo, meu inconsciente.

Primeiro veio um telefonema: - sinto sua falta, amiga! Podemos degustar um velho malte? Vamos marcar uma saída, era a proposta.

Amiga?! Quando nos tornamos amigos? Inquieta, ainda que me sentisse promovida, afinal já não era mais uma vaga em sua agenda, mas uma companhia desejada. Bom, nunca nego um convite a um querido. Marcamos para o domingo, era então uma quarta-feira, dessas sem grandes novidades.

Segundo veio uma mensagem ao celular: - Conto os minutos e as horas para que a semana se finde. Será um “domingo de sol”! Disse em meio a uma paráfrase musical. Dancei ao ler. Reli, rebolei mais um tanto. Repeti o dito em voz alta. Queria tornar concreto, enxugar terceiras ou quartas intenções, queria a frieza de quem procura a semântica do texto e não suas dobras interpretativas.

Ele sempre me alertou dos meus desejos, dizendo, bobagens, enquanto fazia meneios e seus fios de prata se tornavam fios de luz. O corpo deseja, não se reprima, já foi... E assim saia confortada das minhas sessões de terapia. E agora? Será? Pode um encontro entre "amigos" ser tão nervoso? Afinal, não nos víamos há mais de dois anos. Ele, que ao me dar alta, foi velejar por terras alheias. Ora, esqueçamos, pois. O levarei para meu canto preferido, aquele bar em frente ao mar, resguardado da areia, do sol e do vento. Me sentirei protegida como se sentem aqueles que se sentam nas suas mesas, tendo o mar à frente, ainda que seus toques estejam ao longe. Seria isso que eu desejava? Tê-lo a minha frente, sossegada pelas vindas e idas dos garçons, dos burburinhos das mesas cheias, do tilintar dos copos... Tão perto e tão distante do mar, com seu cheiro de maresia, com sua areia quente e os ventos fortes. Ele que sempre me trouxe cheiro, calor e força. Ele que agora significa esse meu mar.

Ele não sabe, mas eu o temo. Mas nem sempre foi assim. Costumava mergulhar, desavisada das marés, emergindo meu corpo em ondas. Fui uma garota de praia, hoje sou uma mulher de quartos. Entrei no meu quarto por medo das minhas ressacas, por meio das ressacas que o mar trazia a mim. O mar foi sendo visto ao longe, assim como olhava para meu passado, todo recalcado nas minhas gavetas, dessas que a gente se nega a fazer faxinas. Meu biquini já desbotado, não pelos usos, mas pela sua inutilidade, tornado um souvenir.

Mas um dia o mar me banhou, começou com a chuva que caia em grossos pingos quando eu voltava ao meu lar. Molhada, mergulhei. E por isso o procurei, toda encharcada pelos banhos tomados. Tive medo, pois o biquini não cabia mais no meu corpo, o mar já tinha virado uma bela paisagem a ser vista da proteção do meu apartamento e, ainda assim, eu ouvi o seu chamado. Era uma tempestade.

E foi por ter medo das paisagens que se constrói depois das tempestades que o procurei. Procurei a ele que hoje me fala de dias ensolarados com tanta ênfase, com tanta musicalidade. Procurei a ele que por anos ouviu sobre a garota de biquini e sobre a mulher das vistas amplas. Falei dos meus medos, do biquini rasurado, da força das ondas, da minha falta de fôlego... Falei de quando, sentada na areia, a onda veio e banhou meu pé, minha perna, meu tronco, meu pescoço e minha cabeça, sendo eu mesma o mar. Deitada, a onda me submergiu como há muito não fazia e com tal força que me fiz sereia. E ele, enquanto me ouvia, suspirou fundo, como se o mar também o tivesse coberto. Foi um daqueles suspiros profundos, de quem ao sair da submersão procura um fôlego de vida, depois de uma pequena morte. E mar, como eu estava, desejei que em mim ele mergulhasse.

Essa imersão transferencial marcou a onda que me levava a ele. E agora ele me chama para ver um domingo de sol, embalado pelo mar. Não que eu tenha restaurado o biquini, não que eu tenha perdido o medo dessas insolações, não que eu tenha perdido o gosto pelas ondas, mas ainda não estou segura da cadência das minhas braçadas e da arte de boiar e ver o céu.

Mas sei que do mar não posso mais fugir. Estou indo encontrá-lo.