quinta-feira, 29 de março de 2012

Simpatias no amor


Era o início dos anos 50 e eu já beirava os 30 anos, moço solteiro, de posses, tinha gado, tinha terras e muitos irmãos para cuidar. Muitos diziam que eu era o partido da cidade e as moças das vizinhanças não me deixavam esquecê-lo.

Era o braço direito do meu pai, senhor distinto, cujas duas mulheres fizeram igualmente parte da minha vida, ainda que ao longe: a esposa, minha mãe, sobrinha do meu pai, morava na casa grande da cidade, e a amante esquentava seus dias frios ao pé da serra no Trapiá, sem deixar também de me dar alguns irmãos. Éramos muitos então, mas só eu fiquei. As irmãs e os irmãos seguiram o caminho das letras, foram ser doutores nas cidades grandes e eu ali, a cuidar dos afazeres da lida do leite, do capim a ser plantado, do algodão a ser colhido, da seca a ser vencida, das cercas a serem consertadas e do carvão a ser produzido. Apesar dessas mulheres, que ora esbarrava nas salas de estar, vivia mesmo era rodeado de homens, trabalhadores como eu, ainda que não tão distintos como meu pai. Ele morreu aos 77 anos e eu sabia que viajaria nesse tempo também.

Não que eu soubesse do futuro, mas sempre soube que meu tempo era de 77 anos, soube como se sabe que se houver chuva no dia de São José, o milho será abundante e o campo de arroz será basto como os cabelos de um anjo. Meu saber era de quem vivia o cotidiano e suas mazelas, era de quem acreditava em Padim Cícero e Frei Damião, era de quem acreditava na mística da vida.

Nunca fui de colocar álcool na goela, cigarro nos pulmões ou adentrar em raparigas. Sabia que ela um dia chegaria e seria a mãe dos meus filhos. Apesar de ouvir dizer que eram os tempos ouros do rock and roll, escutava mesmo, ainda que trazido pelo vento das casas vizinhas, as batidas do forró de zabumba, triângulo e sanfona, comuns nos encontros aos pés da fogueira, quase em meio ao mato. Mas vibrava era com as cantigas de boiadeiro, tangendo o gado e trovejando junto a eles: “tudo que o homem mais necessita, é cavalo bom e dinheiro, saúde e mulher bonita”.

Logo não cuidava apenas dos negócios do meu pai, já tinha os meus. Eram terras vizinhas e meu burro Chamurro, manso como ele só e afeito às nossas trilhas, era o meu companheiro. Um dia o negociei com um vizinho, troquei por uma novilha, mas o trouxeram antes que raiassem dois sóis, pois ele, empacado, apenas chorava.

Chamurro sabia os caminhos todos e o que fazer nos puxincóis, nas cancelas, nas porteiras, que ora pareciam separar domínios, ora pareciam com as portas que dividem os vãos das nossas casas. Assim como eu, Chamurro não gostava de pegar a estrada para a cidade. Mas também íamos, especialmente nos dias de feira, das feiras de gado, negociar a vida, rever os vizinhos e, quiçá, passear pelas calçadas da cidade. Não precisava ir muito longe da minha casa para estar na rua, pois ela era no centro, dessas com janelas que se travestiam de portas e nunca estavam fechadas. Da sala mesmo, na cadeira de balanço, cumprimentava quem passava.

Não era desses que usava botas de couro e esporas de aço. Por isso, meu caminhar nem era tão musical, mas não por isso pouco firme. Usava minhas alpercatas de couro, calças e camisas de tergal e gabardine, sempre com minha cabeça enfincada no meu chapéu panamá, já conformado aos meus contornos. Mas era um homem simples, de gostos simples, tido como muito justo. Não gostava de brigas, já tinha crescido sombreado pela ameaça dos cangaceiros, dos tenentes e não mantinha laços estreitos com coronéis.

Talvez por isso fosse tido como um bom partido. Por isso e pelas minhas mãos, que eram delicadas e desenhadas, pequenas até, afeitas não aos chicotes, mas aos cumprimentos. Não tardou muito e eu noivei. Seu nome era Maria do Ceú, mas como toda pequena cidade, logo começaram os cochichos, de que Maria do Céu não gostava do moço das mãos delicadas. Tive dúvidas, pois sabia que a mulher com quem passaria os meus dias, seria única e eterna, seria a mesma.

Num sábado de Aleluia, guardei, durante todo o dia, um pouco do que me alimentava e na noite, com a mesa posta, talheres, toalhas, vela acesa, rezei a Salve Rainha Até Nos Mostrai, desejoso de saber se era com essa noiva que iria me casar, essa tão cochichada. Entrei nos mistérios da vida e em transe, tive uma visão: estava na praça sentado ao lado de Maria do Ceú, quando chegou uma aluna do Colégio Cristo Rei, toda colegial na sua farda, dirigindo-se a mim, me tomando por entre as mãos e me levando a dar voltas em torno da praça. Foi o meu primeiro baile. Ao fim desse passeio, tive a certeza dos justos: é com ela que vou me casar.

Maria do Ceú me traiu com um outro, mas o mal por si se destrói. E livre, vagueando ainda na companhia de Chamurro, por entre as ruas e as alamedas do meu sertão, fiquei a esperar por ela, que me tirou a dançar na praça do meu sonho. Esperei anos, esperei até uma década.

Mas um dia, enquanto na casa da cidade estava, alguém bate à porta, moça franzina, que sob o uniforme de sua escola, entrevi seios fartos, cintura fina e belas pernas torneadas. Fingindo prestar atenção, ouvi meio sem escutar que trazia um documento para a Dra. Haidée, minha irmã, professora daquela escola de freiras. A convidei para entrar, ela disse não, e foi, mas não sem que eu acompanhasse o seu caminhar até as dobras de uma esquina.

Era ela e mais uma vez, ainda que ela não soubesse, era com ela que eu iria casar. E foi nos braços dela, no seu colo, que aos 77 anos, viajando, morri como meu pai, mas não sem deixar de viver essa bela simpatia que foi o meu amor.

sábado, 24 de março de 2012

O silêncio alquebrado


Já se esquecera das vezes que procurava ouvir. E não tocava. Vasculhou o velho cemitério dos elétricos ultrapassados e encontrou seu antigo Nokia. Trocou o chip. Só podia ser aquela geringonça nova que não sabia usar.

Com o branquinho de lanterna aceso, fiquei a esperar seu toque polifônico. Nada. Ainda é cedo, olhando o relógio. Mas Ele já teria arrumado tempo para dar uma escapulida e ligar. Hum, bobagem. Vou ao computador, bulo nos arquivos, esqueço. Procuro organizar o armário, mas as roupas já estão meticulosamente arrumadas pelo formato e cor.

Folheio revistas, folheio livros, folheio a memória. Nada. Meu Deus já passa das cinco da tarde e nem mesmo comi, me lavei, saí para ver o mar. Deito. Ligo para uma amiga, mas não posso me demorar, Ele ainda pode ligar.

Trimmmm.... Desligo rapidamente o celular e encerro o tricô com a amiga, pulando da cama, era Pedro. Gostava de Pedro, mas não era sua voz que queria ouvir. Desligo, um tanto grosseiramente. Sinto mais peso. Assim não é justo.

Tic tac, tic tac, tic tac... O relógio soa no meu corpo. Não suporto mais. Tudo por causa dela, é só ela chegar e Ele me esquece, some com sua voz, com seu dengo, com seu sorriso, some com sua necessidade de mim. E eu fico tremendo, tremo de solidão, tremo de saudade, tremo de rancor, solapando todo meu ser. Tonta, não resisto mais. E ligo, ligo, ligo... Ele não me atende.

Ouço novamente o som do telefone. É Pedro, mais uma vez, queixoso, amargurado, pedindo explicações, pedindo a mim, ao mesmo tempo em que diz não me querer mais. Alongo-me um pouco, desta vez. Procuro não ser a mesma que Ele, quando me ignora. Mas é Ele que desejo, que sempre quis, que já tive. Em Pedro, panos quentes, falo do meu carinho e do meu desejo, mas enquanto falo, penso Nele que ainda não me ligou, Nele que ignorou meu chamado, Nele que eu amo. Pedro me quer por inteira, Ele não me quer assim. Pedro pede para ir ao meu apartamento, digo que estou indisposta, com trabalho, arrumando a casa, digo muito. Pedro insiste furioso, porém, desolado.  Mas como aceitar o chamado de Pedro, se ainda ressoava as palavras que ouvira ontem.

Ontem, quando saí do carro Dele ouvi as mais belas palavras. Que ia sentir minha falta, que o coração doía já de saudade, que me amava, que eu era seu doce, que não queria que ela viesse, mas não soube como declinar. Bebi vorazes as palavras, mas palavras são palavras. Quero, perto de mim, Aquele que anuncia a doçura do mundo. Quero ao meu lado, na cama, na cozinha, no carro, no meu corpo.

A fome me ronda. Os vizinhos começam de novo a brigar. Acusações, ciúmes, tapas. Fecho as janelas. Acabrunho-me nos meus lençóis. E finalmente Ele liga. O som era de quem estava no banheiro, sua voz ressoava nos azulejos. Disse estar num restaurante com ela. E eu aqui esperando um convite. Perguntou se já havia me alimentado, se desejava um delivery, qualquer serviço de entrega. Puta que pariu, disse. Seu canalha, minha fome é de você. Só agora me liga. Esquece-me toda vez que ela chega. Estão comemorando o emprego novo? Ela vem morar com você? Nessa altura, só existe silêncio nos azulejos e minha voz continua, continua, continua, ora embargada, ora exaltada. Assim não dá, diz Ele, e desliga.

Olho aos lados e não vejo nada. É tudo vermelho. Tudo amargo. Desespero-me, me arrependendo do dito e ainda querendo dizer mais, querendo dizer que nunca mais me chame de doce, que nunca mais me procure, que suma da minha vida, que, por favor, volte pra mim, deixe ela, venha aos meus braços, me deixe acarinhar seu cachos castanhos, sentir seu sorriso pelas mãos, seu peso sob meu corpo. Meu doce na sua boca.

Choro. Giro sob mim. Pego todos os aparelhos de telefone e quebro-os no chão. Não me aquietou. Agora, um silêncio alquebrado. Faço um chá, tomo um calmante e caminho por todo meu apartamento, ainda com a camisola de ontem.

Mais calma, me banho, coloco hidratantes nos pés e fico quietinha esperando o efeito da calmaria, da resignação, do apaziguamento. O interfone toca. Meio tonta, coração palpitando, vou rapidamente atendê-lo. Era Pedro. Trouxe remédio para minha dor de cabeça, que ia me ajudar nos trabalhos acumulados, que ia fazer a faxina no caos do meu apartamento. Era Pedro. Deixe-o entrar, convidei para dormir ao meu lado, apenas dormir, pois com ele não posso ser inteira, o outro é minha metade.

Dias depois, Pedro ainda estava comigo, mas de saída. Fiquei aliviada com o silêncio que agora me invadiria. Despediu-se ao pôr do sol e ao sair do prédio, viu em frente um sedã cinza, com alguém a olhar para a sacada do primeiro andar, o celular sob o ouvido, discando insistentemente, mas ainda calado. Pedro entrou em seu carro, sorriu feliz, e foi-se, lembrando que na sua faxina, havia jogado fora os restos dos aparelhos telefônicos. 

sexta-feira, 23 de março de 2012

O elefante azul



         Era uma vez um elefante que nasceu diferente dos seus pais, ele nasceu com um dom especial. O dom especial do elefante é que ele nasceu azul e seu nome era Danilo.

Seus amigos riam dele porque ele era azul. Danilo se irritava muito mas não podia fazer nada, um dia ele teve uma idéia. Danilo arranjou um balde com tinta azul. Danilo chamou seus amigos e derrepente Danilo deu um banho de tinta azul neles. Danilo começou a rir e eles viram o que era bom pra toce.

Danilo nunca mais foi chateado.

Ps. Um filhote de uma MM aos 9 anos. Redação escolar.

Banho às duas


Foi num intervalo de quatro anos, enquanto tomaram banho às duas. O seu namorado, moço grande, estava a esperar no terraço que ela fosse ao seu encontro, para juntos partirem. Já passara da hora do almoço, mas elas nem haviam comido, apenas se degustavam. Ouviram mais uma vez o chamado do moço grande. Espere, estou no banho, disse ela. A outra tentava apressá-la, vestindo um jeans embranquecido, enquanto tentava amaciar os brios daquele que, já impaciente, esperava, tinha pressa por tê-la. Ao subir, foi içada para baixo do chuveiro, sentindo seu jeans molhar, à medida que a água pesava, pesava tudo, era um encharque. Roubada sua roupa, teve seu corpo mais uma vez molhado. Está bom, dizia agoniada, lembrando, num relance, do moço apressado. Está ótimo, ela dizia, e, malandra, a beijou inteira, enquanto a água que corria entre as duas se tornava um véu, cobrindo-as. Eram duas da tarde, quando ela partiu.

A outra, já secada, olhou ao derredor. Travesseiros sem fronhas, ao chão, restos de castanhas ao lado da cama, CDs fora de suas caixas, lençóis manchados, copos vazios e um cheiro forte e doce na cama. Sorriu, a bandida borrifara seu perfume. O mesmo que havia, duas semanas atrás, deixado vestígios em sua roupa.

Duas semanas depois, o moço impaciente já não existia mais. Eram apenas as duas. Não conseguiram, depois daquele banho, desligar os chuveiros. Foram muitos, cálidos, rápidos, ardentes, de lua, com velas, no escuro, apaixonados, ao som de Bethânia, meio-banhos, fogosos, barulhentos, quatro mãos rápidas, ansiosas, famintas. Nem sempre usavam toalhas, enquanto molhadas, pareciam se absorver por entre os lençóis, manchando também as paredes. As duas continuaram... Assim, foram quatro anos. Nesse ínterim, celebraram dois anos, ela, já maquiada, tomou uma chuveirada rápida. A outra, assistindo a um programa na TV, daqueles que só se ouve e não se olha, foi hesitando ao banheiro. Achou ruim as toalhas já molhadas, as roupas espalhadas na cama, o sabonete que havia ficado ao chão. Mas também se banhou.

Os banhos, das duas, foram rareando. Já se lembravam da hora do almoço. Já eram banhos de duas mãos. As velas foram esquecidas, empoeirou-se a música. A premência, agora, era para estar no trabalho, estar na feira, estar no banco, estar no médico, estar... 

Duas semanas atrás, as duas, quando eram duas horas da madrugada, foram novamente se banhar. Era um banho de lágrimas, mas foram de mãos dadas. Ela virou-a de costas para si, abriu o chuveiro, e lavou-lhe os cabelos. Escorreu pelo ralo, o doce da água, junto com a espuma acre do shampoo, e o sal que ora escorria pelas faces, ora era engolido antes de cair ao colo. A luz estava apagada, entrevendo uma réstia que vinha do quarto. Mas também não precisavam. Eram quatro anos de banho às duas. Mas apenas duas mãos se moviam, as outras duas estavam inertes, cada uma de um lado do corpo. Lembraram as duas, sem partilhar, silenciosamente, daquele primeiro banho, do jeans pesado, dos beijos dados, daquela água que, mesmo fria, não as esfriava. Uma lembrou com saudade, a outra se despedindo. Era um banho às duas da madrugada e tampouco houve pressa.

"O tempo não pára"

Como todo cair da tarde, abrigado no seu quarto, ligava o seu dois em um, na FM de sua cidade. Havia acabado de ganhar um microsistem de sua mãe, como presente pelos quinze anos. Mais alguns presentes e já poderia virar um matusalém. Mas, ok. Não havia mesmo desejado, como tantos conhecidos, aquelas festas chatas, cheia de amigos-grifes. Não. Não saberia o que fazer numa delas. Também não queria parecer ressentido. Sempre tinha o risco de não ter onde colocar as mãos, que estavam enormes, mãos de lobisomen, peludas, mais pêlos do que seriam desejáveis, mais mãos do que também seriam desejáveis. Hã, porque não eram os seus trinta anos, quando poderia voltar ao tempo e se dar ao prazer de esquecer de lembrar e de lembrar de esquecer.

Enquanto era embalado pela água que caia friamente do chuveiro, o locutor anunciava o novo sucesso dele e de sua piscina cheia de ratos. Fechei o chuveiro, ainda não conhecia essa música. Paralisado. “Disparo contra o sol/ Sou forte, sou por acaso/ Minha metralhadora cheia de mágoas/ Eu sou um cara/ Cansado de correr/ Na direção contrária/ Sem pódio de chegada ou beijo de namorada/ Eu sou mais um cara”.

Já não conseguia sentir a água. O refrão disparava cartuchos naquele corpo magro. Sem muito a oferecer ao mundo. Sem sua piscina, mas imerso na solidão. Lembrando de quando o havia visto pela primeira vez. Tão velho, tão doce e forte. Tudo o que minhas mãos de lobisomen não poderiam alcançar, tudo o que elas mais desejavam. Voltou ao banho, rezando para que a chuva parasse, pois no domingo sempre haveria a possibilidade de vê-lo. Era dia de missa. Era o dia dos encontros. Não era dia para chuva. Definitivamente, não, gritava silenciosamente.

E sob o fino da garoa, saiu pela rua, com suas melhores vestes, coração acelerado, batido, pelo acaso. Enquanto o aguardava na lateral da Igreja, no beco dos prazeres, a voz ao longe do padre recitava seus fervores, mas essa era apenas uma voz ao longe. Meus ouvidos pressentiram seu cheiro e enquanto olhava de soslaio, aquele belo homem de tez morena e braços fortes, tão clichê, tão desejado.

Em segundos, estava no meio do beco, naquele beco que tinha, no seu meio, muitas moças a rodear-lhe. Sozinho esperava pelo aperto da paz. Meu desejo o tocaria, enquanto ficava escorado na grande porta lateral de Nossa Senhora da Guia. E assim fiquei. E assim ele veio, desejar-me paz, enquanto meu corpo entrava em guerra, meus dados rolavam e se revolviam.

Finda a missa, finda as moças, saímos, sem palavras. Fomos, como gatos, à procura de telhados, à procura de um abrigo. Como gatos, nos enroscamos, nos metemos, nos bolimos, amassando nossas vestes, nossos corpos, nossos gostos. E eu o toquei, senti aquele estranho em mim, lobisomen feito, bicho da noite, bicho ligeiro, voraz. Eu desconhecendo meu ventre enquanto conhecia o ventre dele.

Ele pediu, eu assenti, não sabendo mais quais eram os dados. Foi a primeira vez, sem conforto, bichado também.

Tonto e assustado volto ao meu quarto. Enquanto sintonizo meu presente e ainda mais tonto e assustado, escuto mais uma vez: “Eu vejo o futuro repetir o passado/ Eu vejo um museu de grandes novidades/ O tempo não pára/ Não pára, não, não pára”.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Se eu tivesse um cigarro...


As teclas não paravam e o som que vinha, vinha como fumaça. Em espirais sinuosos. Olhou pro corpo cheio dela, cheia, rechonchuda.  As ancas relaxadas de encontro ao lençol branco, formando uma tela linda de café com leite. Seu corpo era jazz e sempre lhe trazia uma tristeza blue.
Não conseguia pensar em como retê-la, não conseguia pensar em como mantê-la. Seu pensar não ia além da sua lembrança, demente de botá-la estirada toda em sua boca, arcando com o peso nos lábios. Secura de cigarro, era assim que a desejava. Se o seu desejo tivesse uma trilha, daquelas das novelas e dos filmes de amor, seria suave e doce como Norah, seria forte e rasgante como Amy.
Psiu! Ela acordou. Ronronante, seu corpo virou-se pra ela. Ela a viu sentada, apoiada nas paredes, unhas longas, cigarro nos dedos, sorriso displicente e compenetrado. Venha. E foi. Por cima dos lençóis, por baixo dos panos todos, sentir o cheio de amor amanhecido, de amor matutino, hálito marcado, almiscarado.
Enquanto a beijava, sentia sua boca se fechando, como a se resguardar do cheiro de ontem. Pressionava assim mesmo, até que a sentiu se abrir. Não desejava os amores higiênicos, queria mesmo era o cheiro forte e misturado das bocetas. Dia após dia. Ela sempre achou o amor feito de dia o mais simultâneo de todos. Tinha a energia solar, a vontade de montar, tinha a lembrança enluarada na boca, gosto de ontem, cigarro mascado, e promessa de dias enroscados...
Ah, se, hoje, tivesse um cigarro... teria o gosto novamente dela, segura de tê-la amanhã, por entre os dedos, cheiro marcado abaixo das unhas, retendo-a e mantendo-a por mais um dia, enquanto caminhava com a mão no rosto, sorrindo sobre quase tudo.